Poucas vezes o clichê “seria cômico se não fosse trágico” veste tão bem uma situação. É o caso do vídeo postado no portal oficial do Senado mostrando o presidente da casa e senadores pedindo a reabertura de uma mina de amianto fechada por ordem judicial, alegando falar em nome da vida. Isso mesmo, da vida. É tão surreal que eu faço questão de transcrever:
“Não é possível que a frieza de uma linha de lei possa se sobrepor à vida das pessoas que trabalham, que tiram seu sustento com dignidade nessa mineradora, fazendo com que riquezas sejam transferidas para este município, para o estado de Goiás e para o Brasil. A minha presença é para assegurar que um poder constituído da República, a partir de hoje, está com os olhos voltados a esse drama que vivem as famílias de Minaçu.”, discursou o senador David Alcolumbre acompanhado de um constrangidíssimo governador de Goiás. Ronaldo Caiado é médico.
Bastou esse videozinho ser publicado para algo importantíssimo acontecer: as ações da empresa, que vinham em queda, tiveram uma alta imediata. O capital político se converteu imediatamente em capital financeiro, não para as vítimas do amianto, evidentemente.
Em agosto de 2017, o Supremo Tribunal Federal proibiu a extração e comercialização do amianto no Brasil, seguindo o que países da Europa fizeram na década de 1950. No Brasil, vidas humanas valem quase nada. Por isso há políticos defendendo que o cidadão ganhe a vida respirando amianto e você certamente encontrará gente que crê no uso seguro da substância.
Para desfazer esse tipo de lenda urbana macabra, compartilho com vocês uma reportagem da CBS de Los Angeles mostrando o ocorrido diante do encontro de uma substância que ainda ninguém sabia se era amianto ou não. Na dúvida, tiraram todos os moradores do prédio e interditaram a rua para que especialistas da área de Saúde Pública pudessem identificar corretamente a substância e, no caso de ser amianto, remover de forma a não expor ninguém a risco. Falamos aqui do berço do capitalismo: você acha que eles se empenhariam tanto se não fosse necessário?
Por que tanto pavor com o amianto? Ele é feito de fibras minúsculas que flutuam no ar. Aspiradas, elas vão aderindo aos pulmões e os endurecem, impedindo a pessoa de respirar. É uma longa agonia descrita como afogar-se no seco.
Aqui ainda há gente, como os senadores, que admite a possibilidade de alguém pagar com uma agonia lenta de anos pela grande oportunidade de ganhar a vida trabalhando em uma mina. Também há os que desconfiem dos estudos médicos que levam o povo dos Estados Unidos a entrar em pânico diante da menor suspeita de existência de amianto em algum lugar. Quem não tem nenhuma dúvida disso há quase um século é a empresa que produz o amianto.
Trago para vocês, em primeira mão, documentos obtidos por investigadores italianos e que estão sendo utilizados nos milhares de processos trabalhistas por aqui: a empresa é a mesma na Suíça, Itália, Bélgica e Brasil. Em 1950, a empresa suíça mandou um comunicado a uma unidade no exterior explicando que 20 anos antes, em 1930, havia suspeitado da existência da asbestose e comunicado aos serviços de saúde. Em 1933, um relatório científico confirmou a existência da doença e se iniciou o processo para substituição do amianto. Você pode ler a íntegra aqui: carta-eternit-traducao-juramentada
No próprio ano de 1933, a empresa substituiu amianto em todos os pontos da linha de transmissão onde isso era possível e tomou precauções para proteger os operários suíços. Isso mesmo, só na Suíça e não nas filiais. A brasileira, aliás, foi aberta em 1942, 9 anos depois.
Outro documento, de 1976, traz a ata do Congresso de Neuss, realizado na Alemanha Ocidental entre 28 e 30 de junho daquele ano. O evento foi presidido pelo presidente e herdeiro da empresa que produz amianto, Stephan Schmidheiny, em pessoa. A filial brasileira foi representada pelo sr. Herman Straub, como você pode conferir na página 73 da ata. O documento completo, dividido em 2 arquivos, pode ser lido aqui: paginas-de-congresso-neuss-28-06-30-06-1976-1 paginas-de-congresso-neuss-28-06-30-06-19762-1
Estes documentos foram os responsáveis pela condenação à prisão de alguns dirigentes da empresa pela Corte de Apelação de Turim, na Itália. Eles relatam com riqueza de detalhes o conhecimento que têm sobre as doenças relacionadas ao amianto e os riscos ocupacionais, informações que já detinham então há mais de 40 anos. O texto fala do Brasil, mencionando a instalação de dois “postos de pesquisa” no país, um para atender as fábricas e outro para atender à mineradora dona da mina visitada pelos senadores, de propriedade do mesmo grupo.
Não foi pela estratégia de crescimento que os executivos italianos do amianto foram para a cadeia, mas por uma estratégia de comunicação e lobby planejada em riqueza de detalhes para continuar as operações com amianto mesmo sabendo das consequências macabras.
O documento tem uma parte absolutamente constrangedora tratando dessa estratégia para manutenção das operações nos países que não ofereceriam tanta regulamentação para impedir morte de trabalhadores como a Suíça. “Sujou. A opinião pública está nos colocando contra a parede. Precisamos fazer alguma coisa para lidar com os governos, com a imprensa, com os sindicatos e com os trabalhadores. Vamos elaborar uma história convincente e afinar nosso discurso. Vamos vender a ideia de que é possível implementar o ´uso controlado´ do amianto”, diz o documento que institui também a mudança do nome da substância para crisotila. Tucanaram o amianto.
O principal argumento da empresa para se recusar a pagar as milhares de indenizações devidas às vítimas do amianto é que ela não tem nada a ver com a empresa do exterior, é 100% brasileira, portanto não tinha o conhecimento de que o produto era perigoso, como se sabia no exterior desde 1933. Essa série de 14 documentos mostra que a empresa é brasileira meio como a gente, fruto de uma mistura de estrangeiros. dosp-1963-05-poder-executivo-parte-1-pdf-19630514-79 dosp-1967-06-ineditoriais-pdf-19670622-36 dosp-1967-06-ineditoriais-pdf-19670628-48 ata-eternit-dosp-1970-09 dosp-1970-09-p-2dosp-1973-01-ineditoriais-pdf-19730113-25-p-1 dosp-1973-01-ineditoriais-pdf-19730113-26-p-2 dosp-1974-12-ineditoriais-pdf-19741211-4-p-1 dosp-1975-11-ineditoriais-pdf-19751126-18 dosp-1976-08-ineditoriais-pdf-19760831-23-p-1
Ok, quem é paga para garimpar e ler esses documentos sou eu, então vamos a um resumo. Hoje, a empresa realmente é 100% brasileira, mas trata-se de uma alteração contratual recente, cuja razão é desconhecida, mas que teve o efeito de dissociar a filial brasileira da chuva de prisões e indenizações milionárias em outros países. Aqui, a empresa também deixou de ser solidária nos casos internacionais com a mudança.
O caso é que, em 1942, a empresa foi fundada no Brasil pelos mesmos donos que ela tinha na Suíça, Bélgica e Itália. Era tão pouco brasileira que, de acordo com o arquivo que eu postei da Revista Veja de 1976, participava da feira suíça de negócios no Brasil.
E por que remexer nessa história de ser uma empresa brasileira ou não? Porque, no Brasil, mudar de dono não muda nada no passivo trabalhista e ambiental. Quem compra uma empresa leva junto o passivo.
Os documentos que eu postei alguns parágrafos acima são públicos e publicados em Diário Oficial, obtidos perante a JUCESP – Junta Comercial do Estado de São Paulo – em atendimento à solicitação de pesquisa no acervo das sociedades de capital aberto. Mostram diversas alterações societárias da empresa. Novamente, um resumo, só com os pontos que demonstram que, no Brasil, sempre se operou a empresa e as minas sabendo o tipo de agonia que as pessoas teriam até morrer.
– As empresas mencionadas nominalmente na sentença dada pela Corte de Cassação de Turim figuravam entre os maiores acionistas da empresa no Brasil e a controlavam diretamente.
– A gigante norte-americana Johns Manville Corp – condenada nos Estados Unidos pela morte de milhares de trabalhadores em decorrência de doenças relacionadas ao amianto, mesmo tendo ciência inequívoca dos respectivos riscos era outra controladora brasileira.
– O diretor-superintendente da empresa brasileira é citado na sentença de Turim como braço direito do dono e herdeiro e também um dos principais articuladores da política de omissão adotada na fábrica italiana de Casale Monferrato, onde as mortes e doenças evitáveis levaram diretores da empresa para a prisão.
– O pai e o avô do dono das empresas no exterior atuaram no Brasil. Ambos integraram o Conselho Consultivo da empresa e chegaram a presidi-lo. Também fazia parte desse conselho o administrador da empresa belga da cartinha do início do artigo, aquela que, em 1950, alertava que os riscos do amianto eram conhecidos desde 1933.
Antes que a empresa se tornasse, com orgulho, 100% brasileira, foi feita uma divisão entre o que cabia a nós e o que cabia às subsidiárias no exterior. Aparentemente, equipamentos de segurança e extinção do amianto na cadeia produtiva ficaram para as empresas de lá. Lucro também. Os documentos subsequentes mostram as remessas de lucro que foram feitas sucessivas vezes para os países onde já não se lidava mais com amianto. dou-1970-08-secao-2-pdf-19700825-371-2 dou-1970-08-secao-2-pdf-19700825-41-1 dou-1972-11-secao-2-pdf-19721107-58-1
Dado esse contexto, voltemos à mina visitada pelos senadores que pleiteiam a volta do amianto, a mesma que vitimou tanta gente por aqui e remeteu tanto capital para países europeus. O povo de Minaçu está assustado e pedindo a volta da empresa por algo profundamente humano: o desespero. Aquela mina de amianto, a mesma que vitimou as famílias de quem a quer de volta, é a única forma que eles conhecem de botar o pão na mesa. É aquele ponto em que se troca a dignidade pela sobrevivência.
Não precisa ser um gênio para entender como essas pessoas foram empurradas para a situação absurda de ter de optar entre comer hoje e ter uma morte dolorosa e lenta amanhã. Basta um mapa: a cidade é menor que a mina de amianto.
Se a imagem é impressionante, viver lá é muito mais. No julgamento do STF que proibiu a extração e uso do amianto em todo o território nacional, um detalhe do depoimento da fiscal do trabalho Fernanda Giannasi resume o clima: a decoração do Fórum de Minaçu consiste em uma pedra gigante de amianto. É nessa cidade que o presidente do Senado resolveu aportar querendo reverter um julgamento do STF que dá à vida dos trabalhadores brasileiros o mesmo valor que já se dava à vida de trabalhadores na Europa desde a década de 50.
A vida em Minaçu ainda tem outras coisas bem curiosas. A mineradora tem programas sociais. Nada a ver com gente doente, indenização ou tratamento. Há dois particularmente interessantes. O primeiro doa material restante da produção de amianto para as comunidades fazerem artesanato. O outro é a nobre política de aproximar as crianças da mina de amianto. A descrição do programa infantil feita pela própria empresa oscila entre o surrealismo e o deboche.
Essa é uma foto antiga do dono da empresa original européia que, junto com seu pai e seu avô, também trabalhou na filial brasileira. A preocupação social é herdada diretamente dele que, enquanto produzia amianto no Brasil, foi um dos maiores patrocinadores da ECO-92.
Somente em 2017 o Judiciário brasileiro, seguindo o que diversas Assembleias Legislativas haviam feito localmente, baniu a produção, comercialização e uso de amianto em todo o território nacional. A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, certamente pensando com muito carinho nos trabalhadores brasileiros, contestou a constitucionalidade das leis estaduais que baniram o amianto em São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Depois de diversos lances e muitas audiências públicas, o amianto acabou banido no país.
Agora, o governador de Goiás ficou com a batata quente de Minaçu para resolver. Permitiu-se a criação de um município onde as pessoas nasciam e morriam em função de uma única empresa, que sabidamente produzia algo letal para os trabalhadores e quem mais chegasse perto. Mesmo sendo médico, juntou-se com ex-colegas de Senado num pedido pelo impossível: rever uma decisão transitada em julgado.
Obviamente foi apenas um teatro o que ocorreu em Minaçu, todos os senadores estão cansados de saber que julgamentos transitados em julgado no STF não têm nenhuma possibilidade de voltar atrás. E este não foi algo apenas dos ministros, envolveu diversos representantes da sociedade civil, contra e a favor da produção de amianto, que falaram durante um ano até que se chegasse ao resultado final, o da proibição total.
Enquanto nos Estados Unidos se evacua prédio e fecha rua quando existe uma simples suspeita de alguém ter encontrado um pedacinho de amianto, os nossos nobres políticos querem a reabertura de uma mina de amianto do tamanho de uma cidade. Fazem, na prática, um manifesto público pela volta do amianto ao Brasil. Não se sabe, no entanto, quantos deles pretendem levar amianto para as próprias casas.
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