Temos uma grande vantagem sobre os chilenos: já existe uma experiência histórica do modelo de previdência que se pretende aplicar no país. Quando a Reforma da Previdência do ditador Pinochet foi feita na década de 80, o modelo existia apenas nos livros, universo em que a teoria não precisa se comprovar eficiente na prática para ser admirada.
A previdência brasileira precisa urgentemente ser renovada porque muito brevemente não haverá dinheiro para pagar as aposentadorias e pensões. No momento em que as ideias liberais ganham musculatura nas decisões econômicas nacionais, Paulo Guedes e seus “Chicago Boys” falam muito na previdência chilena porque ela é inspirada na obra de um dos liberais mais influentes do mundo, Milton Friedman, falecido em 2006.
Foi após ler diversas obras dele que José Piñera, ministro de Pinochet, teve a ideia de implementar o sistema de capitalização, palavra que você já deve ter ouvido como forte sugestão de novo modelo para o Brasil. A principal mudança é que você vai receber exatamente o referente ao que você contribuiu. No modelo atual, paga-se para um caixa comum, que é repartido entre quem recebe – o que o aposentado recebe hoje não é a contribuição dele, é o que pagam os trabalhadores na ativa hoje.
O nosso sistema atual, que os economistas chamam de “Pay as you go”, inventado pelo chanceler alemão Otto Von Bismarck em 1880, quando a expectativa de vida era muito menor. Havia muitas pessoas contribuindo para um pequeno número de idosos que morriam cedo. Acontece que as pessoas começaram a viver mais e ter menos filhos, o número de aposentados começou a crescer em relação ao número dos que contribuem, até que a conta não fecha mais.
Os economistas liberais criaram a teoria da capitalização na previdência exatamente para enfrentar o problema da geração seguinte: como cada um só recebe o que paga, não vira um drama para o Estado o tamanho da geração seguinte nem o crescimento da expectativa de vida.
Além da aposentadoria em si, o Chile tem um sistema de apoio para idosos pobres, mas os pagamentos são bem menores que um salário mínimo. Funciona fora do sistema previdênciário, como um auxílio do Estado às pessoas carentes, a exemplo do que existe no mundo todo, inclusive no Brasil.
O sistema de previdência do Chile foi considerado o 8º melhor do mundo na 10ª edição do estudo comparativo Melbourne Mercer World Pension Index 2018. E daí vem a estranheza: por que em 2018 os chilenos foram às ruas até o governo mudar o sistema de aposentadoria?
Nenhum dos lados está errado. A diferença está nos valores e princípios levados em conta para cada uma das avaliações. No caso do Melbourne Mercer World Pension Index, o critério para avaliar um sistema de previdência se sustenta em 3 eixos: adequação, sustentabilidade e integridade.
Adequação examina os benefícios, o design do sistema, os depósitos, o suporte de impostos, morar em casa própria e crescimento dos investimentos. Sustentabilidade avalia a cobertura das pensões, os ativos totais do fundo, contribuições, demografia, dívida do governo e crescimento econômico. Integridade é um conjunto que envolve regulação, governança, proteção, comunicação e custos. Tenha os conceitos de Adequação, Sustentabilidade e Integridade em mente nos próximos parágrafos.
No modelo chileno, todos os trabalhadores precisam contribuir pelo menos 20 anos com 10% do salário para se aposentar e não há contribuições patronais nem do governo. A idade mínima para mulheres é de 60 anos e para homens de 65. O dinheiro das contribuições vai para Fundos de Pensão, que fazem investimentos para obter retornos financeiros, aumentando o montante recebido ao final, quando a pessoa se aposenta. Há previsão sobre o valor da aposentadoria, mas só se bate o martelo quando o pedido é feito.
O índice da Mercer, classifica 34 países em categorias para dar as notas sobre o sistema de aposentadoria:
A+ -Notas acima de 80, Um sistema de aposentadorias robusto e de primeira classe, que entrega bons benefícios, é sustentável e com alto nível de integridade. Só Holanda e Dinamarca estão nesse grupo. Depois há as classificações B+ (notas entre 75 e 80) e B (notas entre 65 e 75), sistemas com estrutura forte, com muitos fatores bons mas algumas áreas para melhoria que o diferem de um sistema A. É nesse bloco que está o Chile, ao lado de países de primeiro mundo: Finlândia, Austrália, Suécia, Noruega, Singapura, Chile, Nova Zelândia, Canadá, Suíça, Irlanda e Alemanha.
Nesse mesmo ranking, o Brasil fica na posição C (50 a 60 pontos), abaixo de Colômbia e Peru que são C+ (60 a 65 pontos), mas acima de Hong Kong, Espanha, Polônia, Áustria e Itália. São sistemas com risco de sustentabilidade, ainda que seja no longo prazo. A categoria D (35 a 50), dos sistemas inquestionavelmente problemáticos, mistura Japão, Coreia do Sul, México, Índia e Argentina. Não há nenhum país na categoria E, com menos de 35 pontos, que não tenha sistema de previdência ou ainda esteja organizando.
A raiz da revolta dos chilenos com um sistema tão bem avaliado está nos detalhes da avaliação: a questão humana e a realidade da velhice.
No caso brasileiro, ficamos na categoria C com um sistema que tem 72.5 pontos em Adequação, 1 a mais que a Noruega e 70.1 em Integridade, 10 pontos a mais que os Estados Unidos. O problema todo é na Sustentabilidade: 28,5 a terceira pior nota do ranking. Já a nota chilena que resulta em um B é composta por altíssimos índices de Sustentabilidade (73.3) e Integridade (79.7), mas a Adequação é de 59.2, bem abaixo do Brasil.
No quadro abaixo você vê onde se localizam os países em dois eixos: sustentabilidade e bons benefícios.
Na comparação feita nesse estudo, entre 2017 e 2018 todos os indicadores do Chile melhoraram e a nota final fez com que a pontuação do sistema de previdência passasse a do Canadá. São feitas 3 recomendações para melhorar o sistema: aumentar o percentual das contribuições obrigatórias, aumentar a idade mínima para homens e mulheres e fazer revisão contínua da pensão mínima paga aos mais pobres.
Para o Brasil, o estudo sugere aumentar a idade mínima ao longo do tempo, introduzir um nível mínimo de contribuições obrigatórias, aumentar a participação de trabalhadores em sistemas de pensões ocupacionais com adesão automática, idade mínima para ter acesso aos benefícios para que sejam usados apenas em aposentadoria, permitir que a aposentadoria seja feita gradualmente com o indivíduo ainda trabalhando e introduzir regras para proteger os interesses de ambas as partes de um divórcio na aposentadoria.
Quando se verifica a solvência e sustentabilidade do sistema chileno, não há dúvidas de que ele é de primeiro mundo, mas a questão é: será que as pessoas conseguem se manter na velhice com a aposentadoria?
A resposta é: em muitos casos não. Por isso a nota de Adequação do Chile é menor que a do Brasil. Quando se faz a avaliação econômica, parece apenas um detalhe, mas estamos falando de problemas tão grandes que levaram o país a ter uma das mais altas taxas de suicídios entre idosos no mundo.
Entre 1990 e 2011, apenas 6 países entre os 36 da OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – tiveram alta nas taxas de suicídio. O Chile é o segundo maior aumento do mundo, ficando atrás apenas da Coreia e à frente de Japão e Rússia. Nos outros países, há um enfrentamento cultural da prática do suicídio, mas não é o caso da América Latina cristã. Note-se que houve uma mudança na forma de registro das mortes no Chile em 2000, mas ela não explica o tamanho da alta.
Segundo o anuário de Estatísticas Vitais do Chile de 2015, a média nacional de suicídios é de 10.2/100 mil pessoas, um pouco abaixo da média global de 10.7/100 mil, calculada pela Organização Mundial de Saúde, mas é a maior do continente. Entre os maiores de 80 anos a taxa é quase o dobro: 17.7/100 mil. Entre 70 e 79 anos, está 50% acima da média nacional, atingindo 15.4/100 mil.
No grupo de 15 a 44 anos, o suicídio é uma entre as 3 maiores causas de morte no mundo. Se o recorte for feito entre 10 e 24 anos, é a 2ª. Ou seja, suicídio é mais comum estatisticamente entre jovens e os programas de prevenção no mundo todo, inclusive no Chile, é voltado para jovens. De acordo com o centro de Estudos para a Velhice e envelhecimento da Universidade Católica do Chile, a proporção de suicídios no país cresceu para 13.6/100 mil em 2017, puxada pelos idosos.
Um trabalho realizado pela Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Chile, chamado “O aumento sustentado do suicídio no Chile: um tema pendente“, recomenda que o país mude urgentemente suas políticas públicas com a finalidade de enfrentar uma realidade diferente do resto do mundo: a epidemia de suicídios entre pessoas com mais de 70 anos. No Brasil também houve aumento da taxa de suicídios entre maiores de 60 anos, ela dobrou entre 1980 e 2012, mas está em 8/100 mil habitantes, menos da metade da chilena.
Quando falamos em números, parece que eles são determinantes para as decisões de um governo, mas há forças além da matemática na mobilização popular. Foi assim que surgiu a Reforma da Previdência no Chile.
Diversos casos de suicídio de idosos começaram a ser noticiados na imprensa, gerando impacto nacional pelo drama envolvido, quase sempre relacionado ao fato de muitos idosos receberem menos que um salário mínimo de aposentadoria pelo sistema de capitalização.
A gota d’água para a opinião pública chilena foi quando um taxista aposentado de 89 anos matou a esposa de 84 e se matou em seguida, devido aos problemas financeiros do casal.
Jorge Olivares Castro e Elsa Ayala Castro deixaram uma carta informando que decidiram “partir juntos” para não “estar molestando mais”. Tinham 55 anos de casados, se conheceram quando ele era taxista no ponto do hipódromo, onde ela trabalhava. Casaram-se, compraram uma casa e não tiveram filhos. Ela costumava falar de um menino que morreu, mas ele não tocava no assunto. Recebiam atenção rara da família, somente um sobrinho.
E foi ele quem decidiu que era preciso internar a tia, já imobilizada pelo câncer e com início de senilidade: o tio não tinha mais condições para cuidar da esposa. Foi acertada a mudança dela para um centro de saúde perto de onde se conheceram. As mensalidades custavam o total da aposentadoria dos dois somadas. Jorge venderia a casa e aplicaria o dinheiro para se sustentar. Preferiram não se separar. No dia programado para a mudança, ele apontou seu Smith & Wesson 38 para a cabeça da esposa, que caiu sobre a cama. Em seguida, deu fim à própria vida.
O caso ocorrido em julho incendiou o país. Logo em seguida, milhares de pessoas foram às ruas exigindo mudanças no sistema de aposentadorias. Deputados de todo o país apresentaram projetos para melhorar o valor das aposentadorias e enfrentar o drama do suicídio entre idosos, em que o Chile se tornou destaque mundial.
A Reforma da Previdência do Chile foi anunciada em 28 de outubro do ano passado, uma semana após um protesto que teve 12 presos depois de confrontos com a polícia.
O novo sistema é muito próximo do sistema dos Estados Unidos, misturando previdência pública com capitalização obrigatória e incentivo para investimento em previdência privada. A contribuição dos trabalhadores foi aumentada de 10% para 15%- quem paga a diferença é o empregador – e espera-se que as mudanças gerem uma alta de 40% no valor das aposentadorias até 2025, quando estará finalmente implementado.
Os gastos com aposentadorias e pensões, que representavam 0,8% do PIB passarão a ser 1,12% do PIB, aproximadamente US$ 1 bilhão. A reforma já vinha sendo estudada e debatida pela Superintendência de Pensões do Chile há alguns anos.
A aposentadoria no Chile agora é composta por 3 pilares: Solidário, Aporte Obrigatório e Aporte Voluntário:
– O Pilar Solidário é financiado por impostos e destinado aos 60% de idosos mais pobres para enfrentar o problema social.
– O Pilar de Aporte Obrigatório foi dividido em 2: contribuição do trabalhador e a nova contribuição do empregador. O que o trabalhador pagou em sistema de capitalização será pago individualmente, com um reforço pela contribuição patronal, dividida entre todos os aposentados com critérios sociais para manter a equidade.
– O Pilar Aporte Voluntário, uma contribuição espontânea em sistema de capitalização, recebeu incentivos fiscais do governo, com o intuito de arrecadar mais para pagar melhores aposentadorias.
Apesar do resultado catastrófico na vida real, a teoria da previdência baseada exclusivamente na capitalização continua sendo defendida por diversos economistas ao redor do mundo, inclusive no Chile. Se tirarmos da equação o lado humano, uma situação que leva idosos ao suicídio, é um sistema muito bom, sustentável, previsível e que remunera mais quem paga mais. Ainda é o sistema apoiado pelo FMI, Fundo Monetário Internacional.
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