Se não muda o equilíbrio de forças no conflito sírio, o ataque feito pelos Estados Unidos com apoio da França e Reino Unido é um recado aos demais ditadores do mundo: o uso de armas químicas rende uma reação imediata e conjunta das forças democráticas, diz o professor de relações internacionais Heni Ozi Cukier, mestre em Paz Internacional e Solução de Conflitos pela American University, fundador da Insight Geopolítico, consultoria de risco político internacional.
Como o professor já atuou na ONU, na OEA e em outras organizações internacionais, ele explicou para a gente por que o ataque foi feito com base na existência de armas químicas e só agora há uma equipe em solo sírio procurando as tais armas.
Você precisa de um relatório específico de gente técnica que foi lá e que coletou amostras e aí você tem uma coisa totalmente comprovada. Isso não quer dizer que não tenha indícios, que não tenha relatórios de outras pessoas que estavam lá, que não tenham vídeos. O próprio New York Times, que é um opositor, que é um crítico ao Trump, ele concluiu, pelas suas próprias entrevistas e analisando os vídeos, que foram usadas armas químicas e que foram jogadas pelo Assad.
A verificação é feita por uma das agências da ONU, especializada no tema. O problema é que os inspetores não conseguem chegar à cidade de Duma porque a Rússia e a Síria impedem a entrada dos inspetores. Quanto mais o tempo passa, maior a probabilidade de que as evidências das armas químicas utilizadas, conforme se pode ver em vídeos que circulam pela internet, tenham sido adulteradas ou completamente eliminadas.
A eliminação indiscriminada de civis é um tipo de violação de Direitos Humanos que a humanidade não aceita. Desde a Segunda Guerra Mundial, os países que fazem parte da ONU acordaram que guerras são entre militares, não se aceita eliminação indiscriminada de civis. O presidente da França, Emmanuel Macron, utilizou a mesma frase de Barack Obama para justificar o apoio ao ataque feito por Donald Trump: “Existe uma linha vermelha para nós que não admitimos, não aceitamos que ela seja cruzada.” – essa linha é o uso de armas químicas.
Ataque super limitado, não vai mudar a vida da guerra da Síria, não vai mudar o Assad, não vai diminuir o poder do Assad, não vai dar poder para os rebeldes, não vai mudar o equilíbrio de poder do que está acontecendo na guerra, mas mostra mais uma vez: olha, esta linha eu não quero que você cruze, pare de usar armas químicas. E manda um recado principalmente para os outros ditadores do mundo. – diz o professor de relações internacionais
Se o uso da força não é desejável e, na utopia de muitos intelectuais chega a ser injustificável, os líderes mundiais têm lidado com a escolha entre ataques pontuais e a barbárie no início do século XXI. Heni Ozi Cukier alerta para um tipo de pensamento mágico bastante comum na nossa sociedade: a ideia de que a evolução humana como conjunto, como sociedade, é algo que sempre caminha necessariamente adiante.
As pessoas têm ideia de que a gente chegou num estágio, como civilização ou como sociedade, que a gente não pode regredir: essa é uma das maiores falácias que existem. Na ciência a gente não regride. Quer dizer, mais ou menos, que agora tem os terraplanistas, tem gente que acredita que a Terra não é redonda, só que você não vai numa escola e vai ter alguém ensinando “não, não, a Terra não é redonda!”, uma vez que descobriu que a Terra é redonda, ela é redonda, acabou. Agora, dentro da civilização, a gente não tem esses marcos estabelecidos que a gente pode falar: não vamos voltar para trás. Claro que vamos. – provoca Heni Ozi Cukier
Quer um exemplo? Pense nas nossas revistas femininas da década de 70 e as blogueiras de moda e postagens de street fashion de hoje. Vamos fazer o mesmo exercício utilizando os materiais produzidos em Teerã, capital do Irã. Até 1979 durou o regime do Xá Reza Pahlavi, monarca que atribuiu a si o título de “rei dos reis”. Era um governo que causava inúmeros problemas ao povo e foi deposto por um golpe de Estado patrocinado pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha. Até então, as capas de revista eram assim:
Logo após a deposição do Xá veio o regime dos Aiatolás, que já se abriu bastante agora que está prestes a completar 40 anos. Ainda assim, basta ver as postagens das blogueiras de moda de Teerã para compreender que os ocidentais erraram completamente nos cálculos do quanto uma sociedade é capaz de regredir na tolerância da supressão de liberdades individuais.
O mesmo erro foi cometido pelos ocidentais no Afeganistão, onde se substituiu o regime ruim pelo muito pior, o controle dos talebans, cuja política é incompreensível para outros países e a tirania com o povo piorou todos os índices de desenvolvimento humano e violou liberdades individuais e a dignidade das pessoas. Na Síria, a grande questão é como avaliar o dia de amanhã: o que viria depois de Bashar Al-Assad? Se ele é um líder que se revelou tirano contra o próprio povo, chegando a usar armas químicas contra os sírios, pelo menos estabelece algum tipo de diálogo com os demais governos, diferente de outros grupos, como o Daesh, Estado Islâmico.
Esse é um problema do Oriente Médio. Você tem de um lado ditadores, sejam eles monarquias absolutistas, como da Arábia Saudita ou dos Emirados; ou você tem os ditadores militares ou você tem as teocracias, os religiosos no poder, como é o Irã. Então você tem essas três figuras e todos eles são da mesma espécie, qual é a espécie? Totalitárias e ditadoras. Então você não tem opções. Para você combater esses ditadores, acabam vindo outras forças, violentas tanto quanto. E aí, a pergunta é: tá bom, essas pessoas são ruins, mas o que viria depois deles? Ou o que viria se não estivessem eles ali? Anarquia. E anarquia é desordem total, é ninguém controla nada minimamente. – diz o professor
Bashar Al-Assad foi entendido pelo Ocidente como aliado e até visto como uma esperança de abertura democrática para a Síria logo que assumiu o poder no ano 2000, com a morte de seu pai. Quem havia sido educado para ocupar o posto era o irmão dele, Basir Al-Assad. O ditador havia estudado medicina, formou-se oftalmologista em Damasco e fez pós-graduação na Inglaterra, casou-se com uma inglesa, não era o estereótipo de líder para dar continuidade à política de Hafez Al-Assad.
No entanto, quando o pai morreu em um acidente de carro, foi ele quem se tornou General do Estado Maior e Chefe Supremo das Forças Armadas. Ainda solteiro, foi nomeado candidato à presidência da República pelo Partido Árabe Socialista Baath – o único do país – e eleito. Na época, enfrentou com destreza a acusação de responsabilidade síria pelo assassinato do primeiro-ministro libanês Rafik Hariri: retirou as tropas que mantinha no Líbano e fez com que os Estados Unidos desistissem de uma guerra preventiva. O discurso reformista agradou norte-americanos e europeus. Candidato único, foi reeleito com 97% dos votos em 2007.
Até esse ponto, nenhum governo ocidental tinha problema em apoiar Assad como alternativa, ainda que fosse um ditador, uma continuidade do pai. A questão é que ele revelou quem era após a Primavera Árabe em 2011, quando começou a guerra na Síria e, nos últimos 7 anos, seus exércitos foram acusados repetidas vezes de crimes contra a humanidade. Em 2014, após quase 200 mil mortes de cidadãos sírios, conduziu uma eleição altamente duvidosa e questionada por todos os observadores internacionais que o garante no poder até 2021.
Ele ainda é mais previsível que um Estado Islâmico? Sem dúvida! Mas ainda é uma opção difícil. Eu sempre falo isso e as pessoas não entendem. Elas ficam olhando para a política e falam: ah, não, mas tem a escolha legal e a ruim. A boa e a ruim. Não, a política não é assim, é a escolha ruim e a muito ruim. E, na política internacional, é muito isso. Então, você não tem opção. Ou você fica com o Assad, que é um sanguinário, que matou muita gente, matou sua própria população, usou armas químicas e fez uma série de atrocidades ou você fica com o Estado Islâmico, que é um Assad piorado. – explica Heni Ozi Cukier
O professor de Relações Internacionais acredita que o principal é ter em mente que não agir é sempre a pior opção e dá como exemplo o comportamento dos países latino-americanos assistindo pacientemente a degradação da Venezuela. O Brasil nada fez e hoje tem de lidar com uma série de crises em diversas cidades envolvendo os refugiados que chegam buscando uma alternativa de vida. A Colômbia, que esperou décadas para conseguir a própria pacificação, corre o risco de ver todo o trabalho ir pelo ralo porque escolheu fechar os olhos para o que acontecia no vizinho ao lado.