Estou ficando velha. Sou da época em que os candidatos a governador de São Paulo andavam com um bolo de papel embaixo do braço e sabiam de cor, a qualquer momento do dia, a qualquer provocação de nós, jornalistas, todos os números da segurança, da saúde, do transporte, da educação, tanto aqueles que lhes favoreciam quanto os que colocavam os adversários em maus lençóis.
Foi pouco a pouco que o Estado substituiu o perfil dos furacões políticos pelos frangos-de-leite de sapatênis. Os embates passivo-agressivos, recheados de dados técnicos colocados com inteligência e sarcasmo, deram lugar a frases publicitárias bonitinhas, lugares-comuns, promessas que parecem saídas de contas de twitter de adolescentes, enfrentamentos colegiais.
A última polêmica é uma frase solta em uma entrevista à Rádio Bandeirantes, dada pelo candidato João Doria, que parece totalmente descolada de seus projetos mas muito atrelada ao tom de discurso de Jair Bolsonaro: “se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira para matar”.
Em confronto urbano, quem atira para matar é bandido. A Polícia Militar do Estado de São Paulo atira para preservar a vida. Todos os policiais militares são treinados de acordo com o Método Giraldi de “Tiro Defensivo na Preservação da Vida”, aplicado desde a década de 90. Recentemente, quando a cabo Sastre defendeu mães e crianças na porta da escola de sua filha e a ação acabou com a morte do agressor, fiz um longo post explicando porque ela foi correta e como funciona o treinamento.
O principal ponto do treinamento é POR QUE o policial atira. Ele atira para PRESERVAR a vida. Isso é a diferença entre ele e o criminoso.
“O agressor, traiçoeiramente e covardemente, com a iniciativa, representado o mal e a injustiça; atuando totalmente fora da Lei. A vida, para ele, não vale nada; o disparo é sua primeira alternativa. Sua arma é sinônimo de morte.
O policial, em reação, representando o Estado, representado o bem; encarnando a Lei e a Justiça, e munido do poder de polícia, tendo que atuar totalmente dentro da Lei. A vida para ele é prioridade; o disparo sua última alternativa com a finalidade de preservar vidas inocentes, incluindo a sua. Sua arma é sinônimo de vida.” – diz a apostila do Método Giraldi.
Os Pilares Básicos do Método Giraldi, que foi utilizado para treinar toda a força policial que atua hoje no Estado de São Paulo são: “Violência, nunca! Tortura, jamais! Força, a necessária! Total respeito às Leis e aos Direitos Humanos. Para o agressor, a Lei! Violência não acaba com violência; só faz aumentar.” Nesse contexto, é impossível que o policial atire para matar. O policial atira para cessar a atividade criminosa, o destino do criminoso não compete a ele, que se ocupa da preservação da vida.
Disso tudo, entendi que a intenção do candidato João Doria seria substituir o Método Giraldi por outro método, em que o foco não seria mais a preservação da vida, mas a reação à altura, como nas Forças Armadas, o treinamento da era pré-Giraldi, substituído porque não dava certo. As Forças Armadas são treinadas para destruir inimigos em confronto. A polícia não tem inimigos, ela garante a segurança dos cidadãos.
Mas, enfim, esses gestores viajados devem entender disso muito mais do que eu, uma simples dona-de-casa. Resolvi entrar em contato com a equipe de campanha para esclarecer a frase. Políticos às vezes se empolgam e acabam falando como se fosse plano de governo algo que não passa de convicção ou desejo pessoal. E, no mesmo dia, no debate da Globo, em embate torta de climão com o iniamigo Marcio França, João Doria já havia feito um pequeno reparo à frase disparada a plenos pulmões nos estúdios da Bandeirantes.
Cobri a campanha do tucano para a prefeitura de São Paulo e era um relógio suíço o funcionamento daquilo. Ele não precisou ficar lá os 4 anos para adquirir um hábito que o meio político não tinha antes que os petistas se instalassem por todos os cantos: mandar oficializar o pedido por e-mail e pedir 24 horas para responder. Imaginei que tivessem a resposta na ponta da língua mas, enfim, topei a empreitada e mandei 9 perguntas:
No dia seguinte, chegou a seguinte nota no meu e-mail, assinada pela assessoria do candidato João Doria:
Fiquei bem brava porque demoraram um dia inteiro para fazer essa resposta e não responderam nenhuma pergunta mas, como a instrução era para mandar outro e-mail para formalizar e esperar mais 24 horas (eita vírus da burocracia que se pega na prefeitura, hein?), resolvi ficar com essa mesmo para o post sair ainda em 2018.
Só não entendi a utilidade do posicionamento do candidato além da própria paz de espírito e um pouco de marketing. A mim, que fiz o treinamento do Método Giraldi, parece que essa questão da defesa da vida do policial e dos cidadãos está coberta pelo que já existe na polícia faz uns 30 anos. E, aliás, se o policial estiver preocupado em matar o agressor, não será tão eficiente na preservação de vidas. Mas, novamente, o que é uma simples dona-de-casa perto desses gestores que viajam o mundo, não é mesmo?
Resolvi apelar ao professor de Direito Militar João Carlos Campanini, que também não entendeu por que precisaria de uma ordem do governador para o policial passar a se defender.
“No meu entender não é necessário esse tipo de ‘ordem’ para que o policial se defenda. Se o infrator da lei atacar o policial ele vai se defender com o que aprendeu nas escolas de formação (efetuar de dois em dois tiros até que a agressão acabe). Esses tiros são em região letal.” – diz o professor
O grande problema, no entanto, é a razão dos disparos. A Polícia Militar vem lutando há anos para que eles sejam efetuados sempre no estrito cumprimento do dever legal, a Corregedoria realiza um trabalho monumental para eliminar dos quadros os maus policiais e é demanda antiga da população paulista poder confiar em sua polícia e vê-la completamente livre de maus elementos. É fundamental para isso que o treinamento seja centrado em atirar para preservar a vida, atirar como último recurso para defender o cidadão, atirar para cessar a atividade criminosa, sem ter preocupação com o destino final ou o justiçamento do criminoso.
“O discurso do candidato é de cunho populista e perigoso no meu entender. Porque infelizmente na polícia nós temos uma pequena parcela, como em todas as profissões, que não segue a lei. Um policial mal intencionado pode interpretar essa frase como uma autorização para matar independente da situação.”, observa João Carlos Campanini.
Depois de conversar com o professor, que obviamente entende dessas coisas muito mais do que eu, fiquei pensando cá com os meus botões como seria bom se todos os nossos políticos tivessem a oportunidade de fazer o treinamento do Método Giraldi, com os policiais. Não que eu defenda dar arma na mão deles – aliás, acho que até no treinamento deveria ser de festim – mas tem umas coisas na apostila que seriam bem úteis para a nossa sociedade:
“Profissional, realista, sem demagogia.
Ensinar o policial a usar sempre a razão; não se deixar levar pela emoção.
Ensinar o policial a não se “precipitar”; a precipitação pode matar pessoas inocentes incluindo o policial; tirar a liberdade do policial.
Não praticar a “valentia perigosa”; é loteria; poderá transformar o policial num herói, ou num defunto, ou num presidiário. E tudo que é loteria, quando está em jogo a vida humana, não deve ser tentado.
Que tem limites. A ultrapassagem desses limites pode custar a vida ou a liberdade do policial.” – ensina o Método Giraldi
Outra parte importante do treinamento, que eu assimilei quando fui sabotada pelo comandante da ROTA, trancada dentro da viatura e forçada a sair pela janela no maior vexame da minha vida, é não aceitar pedido de casamento de erro. A gente aprende com ele, se divorcia e bola para frente. Quando você conserta um errinho, ele vira um errão. Isso serve para políticos e para todos vocês que estão desfazendo amizades por causa deles na internet. Anotem:
“Para o “Método Giraldi” o erro é professor do acerto. Tudo que o policial faz de errado no treinamento ele faria na vida real, mas, uma vez corrigido isso não mais ocorrerá. Assim, o policial erra no treinamento para não errar na vida real. “Morre” no treinamento para não morrer na vida real. “Mata inocentes” no treinamento para não matá-los na vida real. “Perde a liberdade” no treinamento para não perdê-la na vida real.” – diz o treinamento.
Oremos para que os arroubos de faroeste sejam só um treinamento dos mais diversos candidatos – e deixo claro que não só no meu querido Estado de São Paulo – lembrando da época de brincar de forte apache e tentando transferir para a Polícia Militar. Diferente do Falcon, He-Man e Comandos em Ação, qualquer peça encaixada errada nas polícias coloca em risco milhares de vidas humanas.