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“O problema é o guarda da esquina”, cravou Pedro Aleixo para o presidente Costa e Silva quando teve a coragem de ser o único membro do governo a discordar do AI-5, um marco sombrio na história brasileira. Ele era um liberal por excelência, fundador de O Estado de Minas, advogado e jornalista, filiado à UDN e membro da Aliança Liberal. O preço da liberdade é a eterna vigilância, reza a frase atribuída a Jefferson que jamais foi encontrada em seus escritos, mas carrega uma verdade que transpõe os séculos: basta um piscar de olhos para que a liberdade seja confiscada.

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Quando se agigantaram os poderes repressivos contra os discordantes do regime, instituir o AI-5 foi um ato tomado com base no raciocínio da cúpula do poder, da necessidade de manter um governo cambaleante diante de uma oposição que lançava torpedos diários. Ao contrário do ocorreu na Venezuela em 1958, a tomada de poder pelos militares no Brasil não resultou no sucesso da convocação de novas eleições, se arrastou por décadas e já no início esmagava o que prometeu devolver ao país: a democracia.

Não se esmagam a democracia e as liberdades individuais por decreto, mas pela ação dos pequenos poderes no dia-a-dia.

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É isso o que Pedro Aleixo sabiamente tentou dizer aos colegas do governo em 1968. Eles, vivendo na bolha do poder, talvez não imaginassem o efeito daquele tipo de regra sobre os pequenos poderes exercidos em todos os cantos por pessoas frustradas em alguma medida pela própria falta de poder. Aquela única válvula de escape para se sentir forte, dona de si, superior, pode perder completamente os limites quando o exemplo que vem de cima é o da absoluta falta de limite para o exercício do poder.

Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina.”, disse acertadamente Pedro Aleixo, antecipando a forma como os psicopatas do cotidiano iriam se ver livres de amarras para exercer suas perversões quando detentores de poder numa pequena esfera. Aos arroubos de violência patrocinados pelo regime se somam inúmeros, talvez muitos mais vindos de mentes doentias que simplesmente não mais se viram obrigadas a andar dentro da lei.

No final das contas, uma sociedade que, num primeiro momento, ficou estarrecida com a vocação sádica de alguns que haviam jurado defender a pátria, acabou por incorporar a barbárie como regra do jogo. Logo surgiram os que estavam dispostos a reagir na mesma medida. Alguns deles presos foram, como vingança, colocados em celas com criminosos comuns, que souberam aproveitar muitos dos ensinamentos. E ainda hoje há quem defenda essa calamidade da violação dos direitos e liberdades individuais. É sintomático.

Quando se pondera que exista qualquer coisa maior que a vida – seja ideologia, religião ou dinheiro -, está acesa a centelha da desvalorização da vida, um caminho que precisamos reverter.

Os primeiros casos de crianças assassinadas porque queriam roubar seus tênis importados surgiram na minha infância. Eu lembro bem do choque dos adultos, do destaque na televisão, no rádio e nos jornais, da indignação geral. Depois de um tempo, já não merecia tanto barulho assim o caso seguinte. E hoje, enquanto mães, pais e filhos sepultam o destino que poderiam ter escrito juntos, começamos a achar que é do jogo matar por qualquer bobagem e que o jeito é ter uma forma de matar de volta.

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Perdemos vidas numa contagem de guerra: mais de 60 mil assassinatos ao ano, número que passa a ser repetido por todos nós com uma indignação fria porque mergulhar em tanta dor enlouquece. Elege-se um grupo que seria a causa de todos os males e este grupo é o merecedor do sofrimento que aflige os corações de todo mundo que espera um parente voltar para casa à noite. Infelizmente, não há um único grupo culpado, a torpeza da alma é democrática, está rigorosamente em todos os grupos, às vezes mais evidentes, outras mais oculta.

Se a vida realmente não é o valor maior, cada grupo social, de acordo com seu conjunto de valores, estabelecerá quais são as situações em que matar é permitido, muitas vezes esticando o conceito de legítima defesa.

Nos meios criminosos, a vida passou a ser apenas um detalhe que pode estar no caminho de um objetivo final, seja ele dinheiro ou poder. Mata-se por um tênis, um celular, uma resposta torta, uma reação inesperada, uma briga. Fora da criminalidade, qualquer mancha no currículo ou a necessidade de defesa do patrimônio viram valores maiores que a vida. Foi assassinado, ok, mas o que ele tinha feito antes? Nada disso é legítima defesa, o caso em que, ao se deparar com uma ameaça à própria vida ou de outra pessoa, é infelizmente necessário tirar a vida do agressor para fazê-lo parar.

Com tantos assassinatos de inocentes, quem vai se importar com os assassinatos dos culpados mais clássicos? É a mais absoluta verdade que os grupos criminosos – incluindo aí bandidos de farda, as milícias – matam mais, tanto inocentes quanto integrantes do próprio grupo. A sensação de vingança advinda do assassinato de qualquer um desses infelizes faz com que se perca a noção do perigo de perder a sensibilidade para a morte: isso não tem volta.

E é importante lembrar que nos dois grupos, os que vivem da criminalidade e os que estão fora dela, há as aberrações da alma humana, a maldade pura, que vêem inimigos na vida e na felicidade.

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A morte lenta de Pedro Henrique Gonzaga, presenciada por diversas pessoas e até documentada em vídeo, é um exemplo da brecha que se abre para o mal num ambiente quem que a vida nada vale. O segurança que deveria, em tese, garantir a tranquilidade do funcionamento do supermercado Extra na Barra da Tijuca mas, por decisão própria, fora de qualquer regra de autodefesa ou das leis do país, decidiu ficar 7 minutos prendendo o pescoço de uma pessoa desacordada até que morresse.

Custa entrar na minha cabeça que isso aconteceu num supermercado, local de tantas memórias da infância da gente, da minha infância nos anos 80. Era o lugar em que a gente ia com a mãe, com a avó, com a bisavó, brigava pelos doces nas prateleiras, ouvia um monte de nãos e sorria em um sim condescendente que nos recompensava com aquela bala ou chocolate que não era para ser consumido todos os dias. Era ali que começava a organização de todas as festas, dos Natais, das viradas de ano. Agora, é palco de assassinato, em promoção, ao alcance de qualquer criança que ali estivesse.

Não importa o que o rapaz assassinado tivesse feito, a função da segurança é cessar o ato que ameaça os demais e garantir a tranquilidade das pessoas. Que tranquilidade a gente tem sabendo que amanhã nossos filhos podem presenciar um assassinato no mercado e o assassino, preso em flagrante, sairá pela porta da frente da delegacia? Desculpa-se a transgressão sádica do pequeno poder quando ela justifica, dentro da alma dos demais, a vingança contra todo um conjunto de pessoas que desprezam a vida alheia e, muitas vezes, a própria. Sorrateiramente, ao aceitar o raciocínio, o indivíduo passa a ser aquilo que mais condena.

Agora, como sempre, ficamos sabendo da gambiarra, do risco calculado que invariavelmente mata: o segurança não podia exercer a função porque já havia sido condenado por lesão corporal, agrediu uma ex.

O final do enredo a gente sabe: a briga sobre quem tem a obrigação de checar os antecedentes criminais daqueles que terão uma arma na mão e a liberação do uso da força no mesmo lugar em que os demais cidadãos, as mães e as crianças tranquilamente fazem suas compras. O mercado vai dizer que não tinha responsabilidade, a empresa terceirizada também não e a Polícia Federal, que outorga o registro dos seguranças, também não.

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A culpa é do sistema que não funciona. Uma vez que se condena alguém criminalmente, não há um mecanismo de alerta para todos os registros nacionais que exigem atestado de antecedentes criminais? Não, não há. Isso custa vidas, mas nós não nos importamos mais com vidas faz tempo. Todos os registros que foram criados para significar garantia da vida são solenemente ignorados ou levados como em uma corda bamba nas mais diversas áreas da vida nacional.

Há os que vão defender a ação criminosa, abrigando-se no clichê infame do “tem dó, leva para casa”, simplificação grotesca para defender todo tipo de bandido da pior espécie: o que tem prazer no crime que comete. A questão é que a vida importa tão pouco para a nossa sociedade que, se um assassino consegue colar a imagem de sua vítima em algum grupo que se dedica a dizimar vidas, será absolvido socialmente, ainda que tenha perpetrado um ato bárbaro.

Sobre esse caso específico já ouvi diversas versões, como sempre, de quem não estava no lugar mas acha que sabe porque ouviu dizer. Ninguém sabe de ouvir dizer. Dizem que o rapaz estava descontrolado, que tentou levar algo do mercado, que tentou pegar a arma do segurança, que atacou o segurança. Ainda que todas essas coisas tivessem ocorrido, qual delas é punida com pena de morte no Brasil? Em qual caso eu gostaria que o desfecho fosse um assassinato lento? Depois que o ato criminoso cessa – se é que houve -, o compromisso do cidadão de bem é levar o criminoso às autoridades.

E, na realidade, nem é necessário que uma pessoa cometa um ato criminoso para receber a pena de morte dos pequenos poderes: basta fazer parecer que ela cometeu.

Após o assassinato de Pedro Henrique, uma pessoa postou no twitter um vídeo do ocorrido em um mercado de Goiânia que, felizmente, não chegou à morte mas é a humilhação promovida pelos pequenos poderes que inferniza a vida do cidadão comum. Um homem andando de muletas, com o dinheiro na mão, entra para comprar uma bolacha. O segurança começa a segui-lo e o acusa de roubar. Ele nega e acaba agredido, atirado no chão, num bate-boca constrangedor para defender a própria honra.

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O homem mostra o dinheiro, diz que não é ladrão, que ia comprar a bolacha. O segurança permanece incisivo, batendo boca, explicando que suspeita devido à forma como ele se movimentou. A cena é grotesca: quem deveria garantir a tranquilidade dos clientes joga um deles, de muletas, no chão e o humilha na frente de todos os demais, obrigados a passar por esse momento triste e constrangedor. O que justifica isso? Talvez a impunidade de muitos faça com que alguns se sintam aliviados por ver um suposto crime ser combatido. Na realidade, o que acontece ali é a condescendência com quem estava andando fora das regras, o segurança.

Se nós não valorizamos nem a vida, vamos valorizar a honra? Tal como os ratos, alguns consideram que a forma mais honrosa de sair de um canto em que estamos encalacrados é mostrando os dentes e atingindo o ápice da agressividade. É preciso lembrar sempre que essa é a forma preferida de enfrentamento dos ratos, a quem pouco importa o dia de amanhã ou que sociedade vão construir. Precisamos colocar o pé no chão e começar a girar ao contrário o carrossel de justificativas para a barbárie que foi construído pelo nosso medo.

A baciada de assassinatos custa muito caro ao Brasil. Custa na ponta do lápis, na nossa tranquilidade diária, na nossa forma de andar na rua, nas coisas que deixamos de fazer por medo, na resignação frente ao mal. A baciada de assassinatos custa o valor que damos, individualmente, à vida. Custa a nossa dignidade, o nosso respeito a um dom sagrado, a nossa crença em dias melhores. Precisamos, cada um de nós e como sociedade, encontrar uma forma de, apesar da barbárie que nos entorpece, buscar o caminho de volta à civilização.