Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
A Protagonista

A Protagonista

Brasil: um país que pisoteia as vítimas da violência

Mais uma vez Congresso e Poder Executivo selam o pacto macabro de usar uma lei penal para fazer marketing político sem se importar com as consequências para as vítimas. É agindo nessa toada desde sempre que criamos um emaranhado jurídico infindável, que dá ao país a mais nítida sensação de impunidade e aos criminosos a certeza da impunidade ou da punição tardia.

Ontem, o presidente Jair Bolsonaro sancionou uma lei alterando a Lei Maria da Penha. Foi obra e graça de dois deputados jovens, um engenheiro e uma médica, ambos de ótima família e muito bem intencionados, mas que não viram a necessidade de anexar nenhum estudo criminológico na elaboração de uma matéria penal. Ou seja, na lógica dos dois pouco importa a consequência prática da lei, apenas o princípio moral que a cria. Princípios morais são interessantes, mas falta moral a quem desdenha da condição da vítima, coisa que só ocorre a quem lida na prática com vítimas.

Uma das fases de modificação do texto inicial passou pelo crivo da militância feminista do PT. Como, aparentemente, vamos demonizar mais e dar mais punição a agressores de mulheres, então é um marketing muito legal o projeto, não importa que a gente esteja colocando a vida de mulheres vulneráveis em risco. Assim como na elaboração do projeto, a análise foi totalmente calcada em moral e ideologia, sem recorrer a nenhum número sobre criminalidade ou análise técnica criminológica ou de vitimologia.

É bom para os políticos tratar questões criminológicas como se não houvessem dados científicos para embasar decisões. Fazem uma espécie de curandeirismo jurídico e celebram os louros colhidos com discursos enquanto as vítimas pagam o pato.

O projeto modifica um ponto da Lei Maria da Penha: agora o agressor é obrigado a pagar os prejuízos que o Estado teve com a ação dele, seja a conta de hospital do SUS da mulher agredida ou a segurança que o Estado precisou disponibilizar para garantir a vida dela. O projeto, vendido como se fosse a reinvenção da roda, é só a obrigatoriedade legal de que o juiz aplique algo que antes analisava caso a caso, mas já tinha previsão legal. Em todos os crimes a reparação é prevista, mas se analisa o impacto real das ações.

Na justificativa do Projeto de Lei, a parte em que o legislador é obrigado a explicar as razões que o levam a apresentar o documento, os autores elencam uma série de parágrafos com lugares comuns e julgamentos moralistas. Desembocam então no mais puro achismo para concluir o seguinte: "Importante lembrar que a obrigação de reparar todos os danos, ao ser expressa de modo indubitável na lei, pode servir como mais um fator de desestímulo à prática de violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar. Além das sanções na esfera penal, os agressores saberão que os danos causados e que sejam economicamente apuráveis poderão ser cobrados diretamente deles".

Lendo rápido pode até fazer sentido, parece justo. Mas preste atenção nos detalhes: o deputado diz que "pode" servir de desestímulo à prática de violência contra a mulher. Por que não carimba um vai? Porque ninguém sabe o efeito disso nos casos práticos. Até é possível saber, temos os dados, os julgados, os cientistas da criminologia, mas nem legisladores nem Poder Executivo se preocuparam com esses detalhes.

Fazer legislação penal com base em dados e ciência interessa apenas à sociedade e às vítimas. Os políticos brasileiros não se preocupam com essas bobagens porque a prioridade deles é usar as inovações legais para lacrar no marketing político.

Estamos falando de casos concretos, de homens capazes de sair tanto do controle que espancam uma mulher ao ponto de ela precisar ser atendida no hospital. Todo mundo sabe a novela do faz-queixa-retira-queixa envolvido nesses casos, que não são de criminalidade comum, envolvem famílias e histórias de vida que um dia tiveram amor e confiança como base. Imagine, numa família esgarçada, durante uma crise que envolve espancamento, hospital e polícia, adicionar o componente financeiro. Será mesmo uma boa ideia? Não sabemos porque o Congresso não se preocupou com isso e o Executivo também não.

Homens ameaçam matar mulheres agredidas simplesmente porque elas contam para alguém ou dão queixa. Muitos executam diariamente assassinatos que ameaçaram fazer. É natural imaginar que essas mulheres não darão queixa ou não buscarão atendimento médico com medo das consequências que sofrerão quando apresentarem ao agressor uma conta que ele não tem como pagar.

Aliás, em nenhum momento de toda a tramitação do projeto há essa preocupação: os agressores têm como pagar esses custos? Não se sabe. Temos dados suficientes para saber quais são esses custos e qual o rendimento médio dos agressores brasileiros. Seria o primeiro passo para evitar gastar dinheiro público com uma legislação questionável sob o ponto de vista da proteção das vítimas. Como também não se teve esse trabalho, não sabemos se realmente há a mais remota chance de ressarcimento aos cofres públicos. Pode ser que não passe de uma ilusão, mas já se gastou dinheiro público na tramitação e agora é lei.

De toda essa salada, sabemos apenas que agredir uma mulher pode render, além de consequências penais, ameaça de consequências financeiras. Punir financeiramente é uma tese importante, que rendeu inclusive o Prêmio Nobel de Economia a Gary Becker em 1992. Ele utilizou modelos econômicos para explicar a motivação de crimes como corrupção e tráfico de drogas, de armas e de pessoas. Demonstrou que a punição financeira era um ponto importante não apenas para o enfrentamento mas também para o desestímulo deste tipo de crime.

Qual seria o efeito da punição financeira em crimes que não têm motivação financeira? O Congresso não debateu isso. Os juízes analisavam caso a caso, mediante laudos técnicos, antes da obrigatoriedade de se impor essa punição especificamente para violência doméstica. Além das consequências penais, as estratégias de maior sucesso no combate a esse tipo de crime incluem uma abordagem ampla da família desestruturada, com foco no tratamento não só das vítimas mas também do agressor.

Em Diadema, grande São Paulo, há uma experiência sensacional da Polícia Civil tratando homens agressores. Percebeu-se que, após cumprir a pena, ou ele agredia a mesma companheira ou arrumava outra e agredia também. O tratamento em grupo reduziu a quase zero a reincidência, que era o objetivo. Teve ainda outro efeito interessante e inesperado: prevenção. Homens agressores percebem quando amigos estão prestes a ir por este caminho e os levam ao grupo de tratamento antes que cometam uma insanidade.

Não existe violência doméstica em famílias estruturadas emocionalmente. Ela aparece como fruto de alguma instabilidade, frustração ou ressentimento que cresce até ultrapassar a barreira do respeito mútuo. Dinheiro resolve isso? Creio que não. Não é colocando nem tirando dinheiro que a gente diminui violência doméstica, é com prática, estudo, ciência e seriedade.

Agora, o presidente pode fazer o discurso de que protegeu as mulheres e é linha dura com agresssores. O deputado socialista pode dizer que fez justiça devolvendo ao Estado o gasto causado por um criminoso. A deputada tucana pode dizer que está preservando a Administração Pública de se responsabilizar pelos gastos privados. A deputada petista pode dizer que é feminista e joga duro contra homem que bate em mulher. E a mulher que apanhou? Essa pode morrer, os políticos não se importam.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.