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Pensar em Brumadinho é pensar no horror, nas mortes aflitivas, no desespero das famílias, na situação dos que nunca poderão enterrar seus entes queridos e na dos que fizeram enterros de gente com todo um futuro pela frente, na ganância, na falta de consequência dos crimes. Mas um pensamento que vem à cabeça é: como ninguém percebeu que isso iria acontecer?

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Um dos primeiros argumentos da alta cúpula da empresa é a existência de um relatório feito por empresa internacional atestando que não havia riscos naquela barragem específica, a que se liquefez. E esse relatório realmente existe, mas há evidências de que outros relatórios, batendo o carimbo de segurança onde há dúvidas, são algo que se vê muito nesse meio específico.

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Chama atenção que até agora a Vale não tenha comentado a tese de mestrado de um de seus engenheiros, com mais de 22 anos de casa, que atestou em 2010 o risco de liquefação da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho.

O estudo teve algum destaque na imprensa mineira, mas a empresa não comentou e proibiu seu autor de falar sobre o assunto, segundo o jornal O Estado de Minas. A tese, no entanto, é pública. Liquefação não é um fenômeno único, mas a nomenclatura dada a um conjunto de fenômenos diferentes que podem levar uma barragem ao colapso. Washington Pirete da Silva fez, em sua tese de mestrado, uma análise prática segundo uma metodologia nova, diferente da tradicional. A obra se chama “Estudo do Potencial de Liquefação Estática de uma Barragem de Rejeito Alteada para Montante Aplicando a Metodologia de Olson (2001)”.

A metodologia de Olson era, naquele momento, o estudo mais avançado para “se analisar a susceptividade e o gatilho da liquefação em solos finos e granulares sob carregamentos não drenados”. O primeiro era de 1971 por Seed e Idris, depois veio outro em 1979 por Seed, mais um em 1975 por Robertson e Campanella, outro em 1993 por Ishihara, um de Kramer em 1996, o de Youd e Idriss em 1997 – até então a última palavra no assunto – e o novo, de Olson, em 2001.

A tese de mestrado mostra, de maneira extensiva, todos os fenômenos que podem ser considerados liquefação e quais os fatores que contribuem para a ocorrência, levando em conta diferença de terrenos, de solos, de material depositado e de altura da barragem. A metodologia de Olson, como acontece tradicionalmente nas ciências exatas, não é apenas uma tese: é a conclusão após análise de 33 eventos de barragens que se liquefizeram.

Também não é apenas uma teoria o trabalho do engenheiro Washington Pirete da Silva. Como todo bom mestrado em Engenharia, tem base em fatos e na medição deles. O estudo de caso foi sobre a Barragem I do Córrego do Feijão, em Brumadinho:

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É uma barragem de 81 metros, em operação desde 1976. O estudo mostra que, geralmente, há menos riscos de liquefação em barragens mais antigas. Mas a história da Barragem de Brumadinho pode explicar um pouco do seu destino. Ela foi construída por várias empresas diferentes. A abertura do dique, primeiro passo para uma barragem desse tipo, foi feita por uma empresa alemã. Depois, foram feitos sucessivos processos de alteamento, a forma de expandir a área da Barragem.

Cada hora uma empresa diferente conduzia o processo mas, do 4º ao 8º alteamentos, a execução foi da mesma empresa. Na primeira obra dela já houve um problema: um deslocamento de 60 metros no eixo, em comparação ao alteamento anterior, foi feito para garantir mais segurança à barragem. A operação não deu muito certo e foi corrigida no ano 2000. “Embora satisfatória do ponto de vista geométrico por parte da projetista, o sistema de fluxo interno à barragem não se mostrou adequado, induzindo o aparecimento de diversas insurgências ao pé do dique do quarto alteamento e rápida elevação das leituras piezométricas. Assim, em 2000, foi instalada uma trincheira ao longo da base do quarto alteamento, interligada a trincheiras transversais ao eixo da estrutura, com a finalidade primária de se garantir o rebatimento da linha freática”, diz a tese de mestrado.

O último alteamento da Barragem I do Córrego do Feijão foi feito em 2007 – era o nono deles. A barragem, que foi aberta com 18 metros de altura, chegou a 81 metros depois das sucessivas expansões. Até dois anos antes disso, “na primeira fase, ocorrida de 1976 a 2005, a barragem era operada sem uma diretriz quanto à disposição dos rejeitos”. Depois disso, em 2006, após alguns problemas no bombeamento de água de recirculação, mudou-se o método de disposição dos rejeitos, já que se passou a entender a importância de ter um.

Mas os 40 anos de operação sem diretriz sobre a disposição dos rejeitos teve seu preço. “Essa operação ao longo dos alteamentos da primeira fase resultou na formação de um depósito de rejeito não uniforme, com perfis caracterizados por elevados gradientes de resistências e pela presença de camadas de diferentes compacidades no maciço (variando entre camadas fofas a medianamente compactas)”, diz a tese de mestrado do engenheiro da Vale.

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Os testes comprovando os problemas causados por 40 anos de depósitos sem método foram feitos em 2006 pela Geoconsultoria. As conclusões utilizadas para o estudo de caso no mestrado, em 2010.

O engenheiro da Vale coletou material de 25 pontos diferentes da praia de rejeitos. 12 dessas amostras eram grandes, para a realização de estudos mais aprofundados. Entre esses pontos, também há a coleta de 4 pontos de blocos sólidos. O estudo mostra exatamente de onde foi retirado o material e depois apresenta as conclusões apenas dos testes que foram considerados importantes para estabelecer o ponto central da tese: o risco de liquefação da barragem.

É importante notar que a tese não partia do ponto da existência de algum risco iminente, mas fazia investigações que poderiam sustentar um 10º alteamento da barragem, verificando primeiramente a solidez do 9º.

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Washington Pirete da Silva, engenheiro da Vale há mais de 22 anos, concluiu em sua tese de mestrado de 2010 que havia risco de liquefação da Barragem I do Córrego do Feijão.

As medições mostraram que a composição dos rejeitos não era uniforme e que a composição da areia era mal graduada, fruto de 4 décadas de falta de controle no método de disposição dos rejeitos. Foram feitos diversos testes com cada uma das amostras e se constatou que nos diques a homogeneidade dos dejeitos estava dentro dos padrões: iam de medianamente compactos a compactos. No entanto, entre os dejeitos que foram depositados de forma hidráulica, havia todo tipo de consistência. Como causa, some-se à falta de método o peso das máquinas das sucessivas obras de alteamento.

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Mas um desmoronamento desse montante, por liquefação, não é comum. Na verdade, o fenômeno é a causa de apenas 14% dos acidentes com barragens já registrados no mundo, segundo o Manual de Operação de Barragens de Rejeitos como Requisito Essencial ao Gerenciamento dos Rejeitos e à Segurança de Barragens, tese de mestrado de outro engenheiro da Vale. É necessário que exista um gatilho do fenômeno de liquefação, em qualquer uma de suas modalidades. Esses gatillhos foram todos testados nas amostras recolhidas.

O estudo concluiu que havia risco de liquefação na Barragem de Brumadinho, mas apontou que era “pouco provável” a existência de gatilhos.

Segundo a tese de mestrado do engenheiro da Vale, superar os riscos causados pela operação, durante 40 anos, com depósitos feitos sem nenhum padrão, que geraram uma estrutura suscetível a liquefação, era algo que se poderia combater com excelência nas operações dali em diante. O risco continuaria existindo, mas seriam diminuídas as chances de um gatilho dessa liquefação.

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O trabalho não avaliou exatamente os potenciais riscos de ruptura da barragem. Foi considerado que não havia necessidade da avaliação devido aos bons procedimentos operacionais, necessariamente feitos por uma equipe técnica qualificada. O estudo salienta mais de uma vez a importância de manter uma praia extensa de rejeitos e de tentar compensar, da melhor forma, as falhas da estrutura por meio de dispersão seguindo padrões rígidos. De qualquer forma, foram feitas recomendações técnicas de mudanças para operação segura da barragem:

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O resumo da ópera é que a barragem foi, ao longo de 40 anos, operada de forma a aumentar os riscos de liquefação. Considerava-se que, com novas medidas corretivas e uma operação impecável, seria possível evitar um gatilho desses riscos.

A tese que deu o mestrado em Geotecnia ao engenheiro da Vale Washington Pirete da Silva foi aprovada pelo orientador, prof. dr. Romero César Gomes, da UFOP, Universidade Federal de Ouro Preto, e por dois outros professores doutores: Terezinha de Jesus Espósito Barbosa, da UFMG e Heraldo Luiz Giacheti, da UNESP.

É possível alegar que a Vale talvez não tenha sabido do conteúdo acadêmico produzido por um de seus técnicos de carreira. Ocorre que, sem autorização e ajuda da empresa, seria impossível conduzir e concluir um trabalho tão aprofundado de estudo de caso. Na dedicatória da tese, o autor agradece o Gerente de Geotecnia da Vale, Ricardo Leão e outros três engenheiros geotécnicos da empresa: Mardon Mendes, Gustavo Marçal e João Neto.

Ainda que a tese não tenha batido o martelo no risco de rompimento da barragem, levantou questões importantes, que parecem ser estruturais e insolúveis. Poderia a operação correta dos últimos 12 anos corrigir a base incorreta feita durante os primeiros 40? Qual o tipo de risco que alguém está disposto a correr para manter um projeto que já apresentou problemas em sua execução? Por que o relatório da empresa que avaliou especificamente o risco de rompimento atestou a segurança do projeto?

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Depois da publicação do estudo, houve o rompimento da barragem em Mariana e nem assim o sinal amarelo acendeu para as outras, já listadas como tendo algum tipo de problema em diversos trabalhos acadêmicos. Caso desta vez os responsáveis sejam punidos e as vítimas indenizadas, ainda sobra um trabalho hercúleo: o da mudança da cultura de gestão de risco quando se trata de vidas humanas.

Hoje, parece que, enquanto não há um atestado de que uma tragédia vai acontecer, é lícito ignorar uma série de evidências anteriores de que algo não vai bem. Precisamos começar a pensar na mão contrária: só se libera projeto que pode ameaçar a vida humana caso haja garantia total da segurança.

Num país onde mais de 60 mil pessoas são assassinadas todos os anos não faltam exemplos práticos das dimensões perversas da falta de valorização da vida humana.