Ele chegou abalando. Já tem sala própria e está tão confortavelmente instalado que levou para a mesa do escritório um artefato de estimação: a caveira humana paramentada com uma boina vermelha. Um mimo. Entende muito de mandar, é sua especialidade. Por isso, do alto de sua mesa com caveira, manda em quem lhe atravessar o caminho. Apesar de parecer muito à vontade, lhe falta um detalhe para garantir o conforto, a nomeação para o cargo que efetivamente vem exercendo.
Se eu escrevesse uma ficção com esse enredo, vocês diriam que isso só acontece em novela. Pois bem, há áreas do governo tão criativas que transformaram isso na mais pura realidade.
O departamento em que isso aconteceu já vem de uma ópera anterior inédita na história desse país e que foi retratada aqui no blog A Protagonista. Foi escolhido para diretor da Apex (Agência de Promoção das Exportações do Brasil) um apaniguado PSL que não tinha experiência na área nem sequer dominava um único idioma além da última flor do lácio, nossa língua pátria. Não vou nem entrar na discussão moral, a falta de preparo e experiência comprovados impede a contratação na Apex, conforme o Estatuto Social. E aqui não se fala apenas do diretor, mas de todo e qualquer servidor da Agência.
Pois bem, a falta de preparo talvez nem fosse tão problemática quanto o excesso de esperteza. Logo nos primeiros dias, foi feita uma lista aleatória de demissões que trouxe a revolta entre os funcionários, a maioria admitida depois de uma rigorosa seleção cujos documentos são públicos. As demissões foram escolhidas de acordo com um critério interessantíssimo e republicano: o interesse de outros apaniguados pela vaga em questão. Os novos admitidos, todos eles sem o preparo técnico exigido no Estatuto Social, passaram a formar um gabinete paralelo, tomando as próprias decisões à revelia das regras.
O chanceler Ernesto Araújo resolveu, com 10 dias de governo, botar ordem no problema que sua pasta criou. E, como reza a tradição do olavismo bolsonarista, fez isso pelo canal mais institucional e responsável que encontrou, o Twitter. Anunciou numa postagem respeitosa que agradecia os serviços do senhor Alex Carreiro, mas que ele próprio havia pedido para deixar o cargo por razões pessoais. Se a gente fosse adolescente também acharia que isso iria dar certo, mas qual a chance? Pois é.
Alex Carreiro, com toda sua lealdade à imagem institucional do governo, apareceu para despachar como diretor da Apex depois que o chanceler anunciou sua demissão e se trancou na sala dizendo que iria ser recebido pelo presidente Bolsonaro. Era a primeira crise desnecessária.
Só que Jair Bolsonaro não nasceu ontem. Receber alguém que desrespeita ordem de seu governo seria diminuir o chanceler, que pode ter errado na nomeação mas acertou na destituição, e dar prestígio a quem quis passar por cima dele, algo completamente contrário aos princípios da administração pública. O presidente obviamente recebeu o novo presidente da Apex e o chanceler Ernesto Araújo. Neste episódio, tive o orgulho de postar a foto antes do twitter de Bolsonaro. No Diário Oficial a demissão foi retroativa à data em que o ministro a informou via twitter.
O escolhido parecia a solução de todos os problemas anteriores. O embaixador Mario Villalva tem, além da experiência na área, as melhores referências de quem já trabalhou com ele. Tido como dedicado e estudioso, tem história no Comércio Exterior brasileiro e gerou expectativa de colocar em prática sua tese antiga sobre a área. Sempre defendeu que as relações devem ser lideradas por diplomatas porque os interesses de uma nação estão além dos interesses imediatos das empresas.
Mas – tudo o que interessa sempre vem depois do “mas” – não foi bem esse o final do enredo, infelizmente para nós que vemos a presidência e a prole dedicadíssimas aos esforços internacionais. No dia 19 de março, por meio da Portaria 03/2019, o diretor-presidente da Apex resolveu delegar poderes a Roberto Escoto, de quem já falamos no primeiro parágrafo do artigo. Socorreu-se do Estatuto Social da Apex, que diz em seu art. 21 parágrafo 2o:
“Se conveniente para os resultados da Apex-Brasil, o Presidente poderá delegar suas atribuições, sem prejuízo de sua responsabilidade.”
Pois bem, foram delegados os poderes dos incisos I a XI do art. 21 do Estatuto Social da Apex, ou seja, rigorosamente todas as atribuições do diretor-presidente. Na prática, ele passou o cargo a Roberto Escoto.
Na portaria em que delega todos os poderes que poderia exercer, Mario Villalva não explicita os motivos. O fato é que, desde o último dia 20 de março, data indicada pelo diretor-presidente da Apex para que a delegação de poderes se efetivasse, Roberto Escoto tem distribuído despachos e memorandos em que se auto-intitula “Gerente do Gabinete da Presidência”.
Tive acesso, com exclusividade, a um punhado desses documentos, enviados aos mais diversos setores. É curioso que o tom não seja nem parecido com aquele dos documentos dos diplomatas, justamente os que o diretor-presidente da Apex defendeu desde sempre que conduzissem todo o nosso comércio exterior. Os ofícios determinam ações para o andamento interno da Apex, sempre lembrando excessivamente os funcionários de suas obrigações previstas no Estatuto Social, o que não é exatamente a forma mais educada e tradicional de comunicação.
Os documentos mais curiosos são aqueles em que Roberto Escoto assina como “Gerente do Gabinete da Presidência” dando ordens para que seja arranjada sua própria contratação. Ele exerce o cargo sem ter qualquer vínculo formal com a Apex, à parte da portaria de delegação de poderes.
Roberto Escoto assina Gen. Escoto. Incorporou a patente à assinatura, como fazem alguns. Tem um currículo estrelado e reconhecido pelo Exército Brasileiro, mas numa área que não é exatamente o comércio exterior. Foi o General de Brigada que comandou a primeira Força de Pacificação da Maré, complexo de favelas no Rio de Janeiro, e seu trabalho é celebrado não apenas pelo pioneirismo mas também pelo sucesso.
Em agosto de 2017, o General de Brigada falou do tema numa entrevista à publicação especializada Manu Militari: “O trabalho do Exército Brasileiro, tanto na Maré como no Alemão, foi reconhecido até no exterior. Nos meus contatos com militares americanos, senti muita admiração e curiosidade pelo que realizamos nas favelas. Realizar operação de contrainsurgência dentro do seu território representa um desafio muito maior do que reestabelecer a ordem no exterior. Lidar com a própria população é um exercício bem mais complexo, no sentido de que a pressão da opinião pública é maior. Uma bala perdida ou um acidente de trânsito envolvendo civis e militares ocuparia as manchetes se acontecesse em casa, enquanto teria uma repercussão menor se ocorresse na Bósnia ou no Máli.”
O General Escoto não fala do exterior só de ouvir dizer. Lá também tem uma experiência louvável: foi participante das forças de paz brasileiras no Haiti de 2004 a 2005 e foi chefe da CEBW, missão do Exército Brasileiro nos Estados Unidos responsável também pelas compras de material no exterior. Foi chefe e integrante de outras missões brasileiras no exterior e trabalhou no centro de estudos de idiomas do Exército. Tem mestrado em Relações Internacionais pela UnB. Encerrou a carreira na ativa como Chefe da Divisão de Inteligência do Exército Brasileiro e logo em seguida abriu a primeira empresa de serviços militares privados internacionais do Brasil.
Ainda que o currículo do General Escoto seja indiscutivelmente de glórias, a nomeação dele na Apex esbarra em dois requisitos objetivos do Estatuto Social para ser nomeado.
São 3 os requisitos para uma nomeação na Direx: conclusão de curso superior, experiência comprovada com comércio exterior na área pública ou privada e fluência do idioma inglês. A primeira e a última o General de Brigada obviamente tem, mas há um questionamento sobre a segunda. A experiência de Roberto Escoto com comércio internacional é uma empresa de segurança militar brasileira que atua no exterior, a Áquila International, da qual ele é o único sócio.
A Áquila é uma empresa que atua no exterior, mas não exatamente com comércio. Segundo definição do site da própria empresa:
“É a primeira empresa militar privada brasileira, que presta serviços de segurança pessoal e patrimonial, assessoramento e treinamento de forças de segurança (privadas, militares e policiais). A empresa atua no Brasil e no exterior e é constituída por profissionais com muitos anos de experiência operacional nas Forças Armadas brasileiras.
Nossos serviços oferecem assessoramento, treinamento e apoio operacional e logístico especializado a governos, embaixadas, organizações internacionais, organizações não governamentais e empresas multinacionais que atuam em ambientes operacionais complexos, ou seja, com real ou potencial existência de instabilidade, crise, altos índices de criminalidade, terrorismo ou conflito armado.”
Apesar de, para alguns, o enunciado parecer dourar a pílula da existência no Brasil de uma agência de mercenários, algo que vemos nos filmes e seriados com frequência, o General Escoto não abandona os princípios da caserna. Já no website avisa que não faz qualquer tipo de coisa, apenas envia forças quando tudo estiver dentro da lei e contribuir para a futura estabilidade ou pacificação do local onde houve a intervenção.
A empresa somente aceita missões que, na visão de sua diretoria, contribuirão para a melhoria da segurança e estabilidade local nos países onde forem realizadas as operações. Por isso:
“Nunca se envolve com:
Organizações terroristas;
Cartéis de drogas;
Organizações criminosas;
Comércio ilegal de armas;
Proliferação de armas químicas, biológicas, radiológicas e nucleares;
Violação de direitos humanos;
Violação do direito internacional humanitário.
Somente presta serviços para:
Governos e Embaixadas;
Organizações Internacionais, tais como a ONU;
Organizações Não Governamentais (ONGs);
Empresas multinacionais, brasileiras ou estrangeiras.
Somente realiza operações que sejam:
Plenamente de acordo com as leis internacionais e nacionais, do Brasil e do país hospedeiro;
Compatíveis com os mesmos padrões éticos, morais e profissionais das Forças Armadas brasileiras;
Executadas exclusivamente dentro das fronteiras do país hospedeiro.”
Os requisitos para contratação pela Áquila International são bem rígidos. É necessário treinamento militar mas não qualquer um, o de elite, caso contrário não se aceita nem o currículo de quem pretende prestar serviços militares de forma particular. De acordo com o site da empresa, são requisitos obrigatórios para os candidatos:
Cidadão brasileiro;
Oficial ou praça da reserva (carreira ou temporário) ou reservista de 1ª categoria das Forças Armadas brasileiras;
Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS);
Passaporte (validade mínima de 01 ano);
Carteira de motorista categoria “B” (validade mínima de 01 ano);
Idade mínima de 21 anos;
Experiência militar mínima de 03 anos, exclusivamente em unidades de operações especiais, paraquedistas, aeromóveis ou de inteligência; na Legião Estrangeira; no Centro de Adestramento – Leste (CA-LESTE) ou no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB);
Licenciamento ou transferência para a reserva no máximo 10 anos atrás;
Não possuir antecedentes criminais, nem ter sido excluído das Forças Armadas por tribunal de honra ou por licenciamento a bem da disciplina.
Requisitos desejáveis para os candidatos:(não são obrigatórios, mas aumentarão as chances no processo seletivo)
Experiência mínima de 06 meses em missão militar no exterior;
Ensino médio completo;
Capacidade de comunicação oral em pelo menos um idioma estrangeiro (inglês, espanhol, francês ou árabe);
Possuir no mínimo um dos seguintes cursos ou estágios das Forças Armadas: Paraquedista, comandos, forças especiais, precursor, comandos anfíbios, paracomandos, mergulhador de combate, caçador, operações aeromóveis, operações na selva, inteligência, operações de paz, operações psicológicas, contraterrorismo, desminagem e segurança e proteção de autoridades.
Não há dúvidas de que a jovem Áquila International presta serviços de altíssimo nível e muita responsabilidade. A grande questão é: esses serviços podem contar como experiência em comércio exterior?
Há ainda uma outra dúvida, a do conflito de interesses. Pode ser nomeado para a Apex, já tendo recebido previamente a delegação de todos os poderes de diretor-presidente, o único sócio de uma empresa que contrata com embaixadas, governos estrangeiros e organizações internacionais? É possível desconfiar que haja aí pelo menos uma questão de conflito de interesses a ser avaliada.
Ter a sociedade já levantaria questões, mas não é assim que se trata o tema na Administração Pública em geral. O que se proíbe é ser sócio-diretor de empresa privada ou ter cargos executivos. A Áquila International é uma EIRELI, ou seja, essa posição não será mudada tão logo ainda que se feche, doe ou venda a empresa ou se mude sua composição. É necessário lembrar que a nomeação só pode ser para cargo de diretoria na Apex. Os outros cargos são preenchidos à moda “Banco do Brasil”: concurso público com contratação no regime CLT. O Conselho não é preenchido pela empresa mas pelos outros componentes da Apex, ministérios e instituições do governo.
O grande questionamento de toda essa novela é: como e por quê o general Roberto Escoto já assina como Gerente do Gabinete da Presidência da Apex, toma decisões e dá ordens sem ter sido ainda contratado?
Todos os envolvidos parecem ter experiência demais e currículo demais para escorregar em um erro tão primário e que pode escalar para patamares tão graves. A outra questão é a da caveira de boina vermelha na mesa. Não é figura de linguagem, infelizmente. Confirmei com alguns servidores que já passaram pela sala onde Roberto Escoto se instalou e a história é verídica. Nenhum deles, no entanto, soube precisar se é material biológico ou uma réplica, mas dizem ser assustadora.
Eu, pessoalmente, discordo. Meu filho de 7 anos faz coleção de caveiras desde os 3, mas nunca mandei esses belos artefatos para a escola porque sei como hoje, para as pessoas, tudo é noooossa. Pelo que andei perguntando sobre a caveira, estou quase concluindo que é a que representa os paraquedistas do Exército, algo tradicional. (Aliás, General Escoto, se estiver lendo, seria uma honra enorme um exemplar para engrandecer nossa coleção doméstica). Sim, paraquedista como Jair Bolsonaro. A última vez em que os dois se encontraram foi no dia 24 de novembro, no aniversário de 73 anos da Brigada de Infantaria Páraquedista do Rio de Janeiro, cerimônia à qual Jair Bolsonaro compareceu como presidente eleito e paraquedista número 29.949.
É fato que a experiência tanto do General Escoto – embora não seja exatamente na área comercial – quanto a do embaixador Mario Villalva na prática das relações exteriores é infinitamente maior que a acumulada pelo chanceler escolhido por este governo. Por isso fizeram essa mudança radical de estratégia, largando a teoria de concentrar nas mãos dos diplomatas o comércio exterior para passar o poder a um militar da Inteligência, versado em Relações Internacionais.
Enquanto o presidente Bolsonaro investe de forma pesada na sua agenda internacional, a parte que interessa ao povo, o Comércio Exterior, é soterrada por uma trapalhada após a outra. Se a lógica do governo é dar tanta importância ao discurso e aos twitteiros, como vimos na visita aos Estados Unidos e na agonizante Reforma da Previdência de Paulo Guedes, faz sentido. A satisfação para o público já está dada por meio de fotografias, elogios públicos, muita viagem e tuitadas arrasadoras até com filminho. Falta agora arrumar a casa para a parte da equipe que entende de outro ofício: carregar o piano.
(Assim que recebermos a resposta oficial da Apex sobre o caso, será publicada em atualização neste mesmo texto)
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