Não faltam polêmicas em torno do filme Coringa nessa era em que todo mundo se ofende com tudo e a arte vira objeto de problematização política. Essa, no entanto, tende a ser bem mais quente do que as geradas até agora pelo politicamente correto: os autores deliberadamente escolheram uma música composta por um pedófilo condenado que está na cadeia desde a década de 90.
Gary Glitter, que fez sucesso na cena do glam rock durante as décadas de 70 e 80, tem agora 75 anos de idade. Seu nome verdadeiro é Paul Gadd. Foi preso pela primeira vez em 1999, quando admitiu ter filmagens de crianças sendo estupradas. Em 2015, recebeu pena de 16 anos de prisão, que está cumprindo. Foi condenado por abusar sexualmente de uma menina de 13 anos, uma tentativa de estupro e quatro incidentes de assédio sexual. Todos os fatos ocorreram entre as décadas de 70 e 80.
A música usada numa cena longa, "Rock and Roll Part 2", de 1972, tem tudo a ver com o filme e com o personagem. A Warner não comenta a escolha feita. Assista:
O Coringa é o maior lançamento do mês de outubro na história da indústria cinematográfica. Faturou US$ 93,5 milhões apenas nos Estados Unidos e, US$ 140 milhões nos outros países. É um sucesso absoluto: US$ 234 milhões de dólares em apenas uma semana.
Estamos falando de uma obra que faturou perto de R$ 1 bi em uma semana e que utiliza o trabalho de um pedófilo condenado. Ele deve receber os royalties?
Essa é a pergunta que está deixando o público em polvorosa. Na Inglaterra, país natal do músico, já se lança uma discussão importante: condenados por crimes devem continuar recebendo os dividendos de sua propriedade intelectual? Não é uma questão fácil e foi abordada em longa reportagem do Guardian, que pondera o direito de propriedade, a realidade do quanto vai ser pago e as decisões morais da indústria cinematográfica.
A música usada em Coringa é parte de um single lançado em 1972 a partir de uma jam (improvisação). O lado A ficou com o nome Rock And Roll Part 1 e o lado B, o que aparece no filme, como a parte 2. Foi o sucesso que finalmente catapultou o cantor da noite londrina. Ele se encontrou no glam rock e fez bastante sucesso não só na Inglaterra. Em 1994, participou da abertura da Copa do Mundo em Chicago e gerou atenção das Spice Girls.
Ele chegou a gravar com elas para o filme Spice World, de 1998, mas as cenas foram cortadas devido às acusações de porte de material pornográfico com abuso infantil. Agora, 21 anos e muitas condenações depois, resolveram escolher livremente uma música dele para ilustrar um filme. Poderia ter sido outra? Não sei, mas não foi algo aleatório nem tem relação com as condenações.
Nos Estados Unidos, a música do pedófilo inglês é muito utilizada em games de esportes, tanto que tem até um apelido "The Hey Song". Foi somente quando colocada no filme que fez o público ligar a obra ao autor.
Não há dúvidas de que o universo dos gamers tem tudo a ver com a versão Joaquim Phoenix do Coringa. Utilizar uma música já conhecida nesse universo e utilizada até como espécie de piada interna ou código de pertencimento a um grupo também tem tudo a ver com o filme. Mas não se pode dizer que a Warner ou os diretores foram pegos de surpresa por essa história, é mais que improvável. Será que o júri do Festival de Veneza, que aclamou Coringa, pensou nisso? Não sabemos e talvez jamais saberemos.
O pedófilo condenado já disse que espera receber centenas de milhares de dólares pelo uso de sua música em Coringa. Que vai receber não há dúvidas, mas a quantia pode não ser tudo isso. Além da música ser em coautoria, há diversas empresas que recebem gordas participações por ter colocado a obra no filme.
Gary Glitter está acostumado com isso: atualmente ele recebe royalties do grupo musical Oasis. Em Hello, eles se referem a uma música do pedófilo e, então, ele tem direito a receber os royalties mesmo estando preso. Não é o único caso. O produtor Phil Spector, condenado pelo assassinato da atriz norte-americana Lana Clarkson em 2003, ainda recebe royalties por River Deep - Moutaing High - que já foi utilizada até no juvenil Glee - e por Be My Baby.
Querendo ou não, o Coringa nos confronta com duas decisões morais que precisamos tomar:
1. É possível separar o artista de sua obra?
2. Condenados continuam tendo direito a propriedade intelectual?
Se o pensamento foi apenas técnico ou econômico, a resposta para as duas perguntas é sim. Mas seres humanos são mais complexos. Obviamente podemos gostar de uma obra produzida por alguém que é a escória moral da sociedade, mas as perguntas aqui são mais profundas. Um artista é sua expressão, se ele se expressa cometendo um crime, devemos reverberar qualquer outra coisa que ele expresse? Uma pessoa cujo intelecto produz crimes deve continuar lucrando a partir desse intelecto? Eu tendo a dizer não às duas questões, mas quero muito ouvir a sua opinião.