Hoje a polícia do Rio de Janeiro fez um trabalho impecável no episódio traumático do sequestro de um ônibus na ponte Rio-Niterói. Durante as transmissões ao vivo era impossível esquecer a chaga deixada pelo sequestro do ônibus 174, que terminou com uma ação disparatada da mesma polícia, matando uma refém e depois matando o criminoso sob custódia. Felizmente hoje foi um dia de acertos e vidas salvas.
O sequestrador, que portava uma arma de brinquedo, dizia ter combustível em seu poder e ameaçava atear fogo ao ônibus, lotado de gente que saiu de casa pensando que iria enfrentar mais um dia normal de trabalho, de estudo, de vida. Muita coisa mudou no treinamento policial durante esses quase 20 anos. Apesar de todos os problemas e desacertos, vemos aqui um avanço: foi solucionada da melhor forma possível uma situação que tinha todos os componentes para ser uma nova tragédia.
Um sniper deu um tiro certeiro no sequestrador que ameaçava incendiar o ônibus, cessando a ação criminosa e salvando os reféns. Mas vivemos num clima tão violento que há pessoas comemorando mais um assassinato do que 37 vidas salvas.
Só os dementes sentem prazer ao brincar de Deus e decidir quem vive e quem morre. Não é um ato de prazer, é um ato de desprendimento do policial salvar a vida de gente que ele nem conhece passando pela experiência macabra de tirar uma vida. Quem tem a alma limpa não fica feliz ao tirar uma vida, pode até se sentir consolado pelo sentido nobre da ação, mas não deixa de ser uma experiência terrível.
Eu compartilho da felicidade do policial ao perceber que havia salvo todas aquelas pessoas, que elas poderiam voltar ao seu dia-a-dia para fazer o que quisessem, até falar mal da polícia do Rio de Janeiro. Ele salvou 37 famílias da tragédia, salvou a cidade de mais uma chaga, o país de mais uma barbárie. É aquele policial, sozinho e com os que ama, que vai enfrentar o impacto psicológico inevitável de tirar uma vida, mesmo sabendo ser absolutamente necessário para salvar outras.
Infelizmente, tanto este policial quanto eu e você vivemos numa sociedade em que se normaliza a barbárie. Virou moda nas redes sociais dizer "CPF cancelado" para comemorar situações do tipo. Acredito que a expressão é a marca da escuridão tomando a alma.
Existem até contas em redes sociais chamadas "CPF cancelado", que distribuem vídeos do momento em que criminosos são abatidos pela polícia. Se vê pouca ou nenhuma comemoração pelo salvamento das vítimas desses criminosos. Aliás, é uma narrativa tão perversa que na maioria das vezes as vítimas são simplesmente ignoradas, não importam. O que importa é se sentir liberado para sentir prazer com um assassinato.
Nossa mente é programada para acreditar que somos bons. Até quando sentimos prazer com algo completamente execrável, como a morte de um ser humano, criamos mecanismos para acreditar que somos bons. Se o ser humano era ruim, se estava fazendo algo ruim, se é bandido, se estava ameaçando alguém, então tudo bem ficar feliz com a morte dele. Não está tudo bem. Tudo bem seria não termos de conviver com isso, seria a redenção de quem anda por caminhos tortuosos. A morte de um criminoso é apenas um desfecho menos pior de uma tragédia.
No caso do ônibus da ponte Rio-Niterói, obviamente os reféns ficaram felizes e aliviados. A vida é o bem mais sagrado, esteve ameaçada e foi salva. O mais importante é isso. No entanto, infelizmente, para que todas essas vidas fossem preservadas, essas pessoas foram obrigadas a passar pela experiência de presenciar uma morte por arma de fogo. Não é uma coisa tranquila, não é bonito, não é libertador, não faz bem para ninguém ver isso.
Uma coisa é parabenizar o policial por salvar vidas. Outra, bem diferente - e mais parecida com a lógica dos criminosos - é celebrar uma vida a menos.
Nos sentimos tão ameaçados e tão impotentes diante da situação de criminalidade no Brasil que já é quase normal esse recurso psicológico de justificar a situação absurda em que um ser humano comemora a morte de outro. Quanto mais se aceita que alguém se safe com essa justificativa, mais gente vai se sentindo à vontade para normalizar dentro de si esse tipo de sentimento nefasto.
Quando uma pessoa não tem mais vergonha de dizer publicamente "CPF cancelado" como forma de comemoração da morte, significa que estamos falhando como sociedade, estamos permitindo a livre manifestação da barbárie, estamos abrindo caminho para o discurso de destruição.
Não há uma única experiência violenta na humanidade que não seja acompanhada por um discurso que a legitime moralmente. Os comunistas, por exemplo, apesar de contabilizar as cabeças que cortaram em nome de seus ideais, ostentam até hoje o monopólio da virtude. Acreditam que fizeram tudo pelo bem da humanidade e que, fora dos ideais deles, tudo é mau e deve ser combatido.
A maldade existe e se transforma de acordo com o que é mais aceitável para uma sociedade. Há tempos em que a moda será matar porque é um ganancioso que explora o povo. Em outros tempos, a moda é comemorar mortes violentas dos violentos. Não há diferença moral, são todas desculpas para normalizar a dessacralização da vida humana, a desumanização dos indivíduos e a imposição da vontade de um grupo sobre os demais a qualquer preço.
Já me disseram que "CPF cancelado" é apenas uma piada de internet, que é até engraçado. Chegamos ao ponto em que a torpeza de espalhar vídeos de um assassinato e sentir prazer com ele pode ser justificada pela vilania de quem morreu. Não pode. Dois erros não fazem um acerto, fazem um mundo pior.
É preciso reconhecer a diferença entre os discursos que constroem um mundo melhor e os que esgarçam o tecido social. Infelizmente, as narrativas destrutivas são sedutoras, dão a ilusão de poder, podem servir para simular coragem e ainda pagam o dividendo de fazer o indivíduo parecer virtuoso aos olhos dos menos atentos. Pior que isso, são contagiosas.
Dizer "CPF cancelado" diante de uma morte é sórdido e abjeto, é a marca da maldade. Não tem nenhuma relação com a ação correta da polícia que salvou reféns. Policial gosta de salvar vidas. Quem gosta de morte é criminoso.