Talvez tudo no Brasil realmente comece a funcionar depois do Carnaval, pelo menos espero sinceramente que seja assim com o governo Bolsonaro. É necessário levar em conta, além do grave problema de saúde que esperamos ter sido resolvido nesse início de mandato, a grande dificuldade na montagem da equipe, feita a partir de um novo paradigma, que não envolveu o toma-lá-dá-cá tradicional e os ministérios concedidos de porteira aberta para alguns partidos amigos em nome da governabilidade.
Alardeou-se que as escolhas seriam por mérito e, obviamente, nada é tão simples. Fazer parte de um governo implica necessariamente concordar com as políticas públicas e forma de administração propostas pelo Presidente da República. Dado que Jair Bolsonaro ganhou a presidência da República sem fazer uma única proposta, apenas se colocando contra “tudo aquilo que está aí”, é evidente que a pauta de costumes e o alinhamento ideológico também passam a ser parte importante do currículo.
O fato é que o governo tem projetos importantes para tocar e o Chefe de Governo é responsável por manter o funcionamento do Legislativo a favor da sociedade, mas a roda está meio lenta, com baterias demais voltadas para a lacração.
Vivemos a sociedade do espetáculo não só na mídia, agora também na vida pessoal. Forma-se a imagem de uma pessoa pelos registros espetacularizados da própria vida espalhados pelas mídias sociais, em relação direta e indireta com milhares de pessoas que passam a ver aquela experiência como realidade – e não um recorte dela. Nessa realidade a expressão com tintas mais fortes pelas redes ou em vídeos passa a ser associada a força de caráter ou capacidade de trabalho, quando não há nenhuma conexão.
A maneira firme e, muitas vezes, agressiva como o presidente Jair Bolsonaro sempre se posicionou nas aparições públicas fez com que sua personalidade virasse o mito da era da overdose de informações e compartilhamentos. Os conceitos criados livremente pelo imaginário popular a partir do poder da imagem e do compartilhamento pouco têm a ver com a biografia ou a conduta do deputado. Ele se tornou um ícone, o símbolo da energia e da força para a mudança, um indivíduo “que fala tudo que vem à cabeça”, espontâneo, gente como o povo.
A evolução tecnológica e o atrelamento da vida pessoal a compartilhamentos de imagens e informações em tempo real deram à imagem um poder que ela não tinha há alguns anos. Convivemos com naturalidade com o “jornalismo declaratório”, aquele derivado das mudanças globais e do enxugamento das redações, em que apenas a declaração já serve para formar uma reportagem completa, deixando em desuso a tradicional checagem de fatos para contextualizar o discurso de figuras públicas.
É por esse mecanismo que, pouco a pouco, quando as declarações passam a ocupar lugar de destaque maior que os fatos, tenta-se dar a elas credibilidade automática. Pouco importa como informação apenas o que uma figura pública diz, é necessário saber como e se esse discurso se encaixa nos fatos e nos documentos disponíveis. A partir daí que o público tem elementos para formar sua convicção, que pode acompanhar ou não as opiniões do jornalista.
Quando, por vontade própria, o jornalismo abandonou o piloto automático da checagem de fatos dando o falso status de credibilidade ao debate meramente declaratório, estendeu esse poder também às declarações nas redes sociais.
E, por que não? Qual a diferença entre ver a mesma declaração da mesma autoridade num veículo de comunicação ou no twitter? Na rede social o público se sente ainda mais próximo. O espaço preenchido pelo jornalismo era o de ponderar discursos com dados de realidade: fatos, eventos e documentos. Não há vácuo no poder e informação é poder. O espaço passou a ser preenchido do jeito mais natural, o que já é feito pela nossa memória quando incerta sobre as lembranças, o mecanismo de dar o status de real àquilo que parece coerente.
É dessa forma que Jair Bolsonaro passa a ser o típico militar – e não o típico deputado -, mesmo tendo ficado no parlamento 27 anos, quase 3 vezes mais tempo que no Exército. Colocou a família inteira na política, confunde vida familiar com o público, tem até filho que jamais exerceu outra profissão senão a de parlamentar e ainda assim é chancelado pela maioria do povo brasileiro como a “nova política”. Seria algo completamente irracional se o discurso não tivesse reivindicado para si o status de realidade. É inegável que Bolsonaro discursa como “nova política”.
Um efeito colateral de dar ao discurso o status de realidade é o excesso de expectativa. Se o presidente fala do jeito que fala, espera-se que seja automática uma revolução na forma de governar, que tenha pulso para conduzir reformas, seja intolerante com corrupção, jamais favoreça apaniguados, seja extremamente ativo e produtivo, batalhe diariamente para fazer valer a vontade do povo. Nada disso é fácil e o fato de discursar nesse sentido não garante que uma pessoa seja capaz de agir assim, embora isso tenta passado a ser o que se exige dela.
E não podemos cobrar da pessoa que cumpra o que promete? Claro que sim. Mas os adultos só deveriam acreditar em discursos que têm nexo com a biografia de quem os profere e com a realidade.
Toda a dificílima pauta econômica e social que Jair Bolsonaro tem diante de si depende de um Chefe de Estado e de Governo responsável. Não há tempo nem espaço a perder valorizando lacração, destempero e contorno de erros primários. Infelizmente o mesmo fenômeno que levou o presidente da República à condição de mito – a supervalorização dos discursos – é o que causa os percalços diários de seu governo e gasta seu capital político como se estivesse jogando dinheiro pela janela.
Num país que precisa reformar urgentemente seu sistema de Previdência, quer ser mais rigoroso na área penal, precisa para ontem diminuir os níveis de violência e, se quiser um futuro melhor, tem de criar um novo paradigma na educação, qual é a necessidade de abastecer de forma irresponsável a pauta declaratória diária da nação de maneira surreal? Junte-se a isso a presença dos filhos, que ultrapassam todos os limites da legitimidade e do respeito à presidência da República com a desculpa de “defender” o pai.
Se o presidente da República Federativa do Brasil realmente precisa que os filhos saiam vociferando em rede social para se sentir defendido, estamos perdidos. Isso é sinal de fraqueza, não de força.
Qual a necessidade daquela exposição pública de Gustavo Bebianno? Enfraquecer Bolsonaro? Mostrar que ele é ingênuo a ponto de escolher para seu núcleo duro alguém que “se revelou um traidor” em menos de 3 meses de governo? Não entendo qual a dificuldade de tomar decisões de forma presidencial, responsável, sem ter de criar uma novela mexicana em torno de qualquer fato do dia-a-dia. Não quer mais o ministro? Simples, diga a ele para sair. É assombroso o nível de amadorismo de ter um filho xingando ministro em rede social para provocar a fritura. De que mais é capaz alguém que aceita até isso? Tomara que a gente não descubra.
Há ainda a necessidade inconsequente de se mostrar desafiador e combativo por parte do próprio presidente da República. Para citar um exemplo recente: qual a necessidade de elogiar e chamar de “estadista” um crápula como Alfredo Stroessner? Lacrar? Chocar? Nada disso ajuda o povo brasileiro.
À parte da ditadura sangrenta que impôs ao Paraguai e do estado de verdadeiro caos financeiro e social em que deixou seu país, Stroessner também era pedófilo. Há alguns anos foi revelado um esquema complexo de pedofilia na alta cúpula de seu governo, que durou durante toda a ditadura. O próprio ditador e altos oficiais patrocinavam sequestros de meninas de 10 a 15 anos nas zonas rurais do país. Elas eram mantidas às vezes por anos como escravas sexuais. As investigações estimam que Stroessner deflorasse em torno de 4 meninas sequestradas todos os meses.
Agora Bolsonaro tem de lidar com o tema Stroessner e sabe Deus a versão que vai precisar criar para justificar a bobagem que disse. Mas a pergunta é outra: qual a necessidade de associar a presidência da República do Brasil às controvérsias de um ditador pedófilo que já morreu?
O tempo inteiro o presidente da República tuíta para falar mal da mídia num tom de vítima, sem perceber a desproporcionalidade de poder entre o primeiro mandatário do país e um repórter. E não estamos aqui falando das reações necessárias, mais de coisas absolutamente dispensáveis, até porque mentirosas, como tuitar um pedaço do pacote contra o crime de Moro dizendo que “parte da mídia e pessoas de má fé omitem propositalmente”. Ninguém omitiu o pedaço que ele publicou, houve exaustivo debate. Em que ajuda o Brasil a criação do factóide?
Os cansativos pronunciamentos contra “os esquerdistas” tiveram sua importância durante a campanha, não há como negar. Mas a República também é dos “esquerdistas” e Jair Bolsonaro, quer queira quer não, é o presidente deles e tem o dever de dialogar e prestar satisfações com transparência a eles. O presidente é do Brasil, não de uma ideologia. Ele conduz a administração e as políticas públicas de acordo com suas convicções, mas elas devem ser para o bem do povo e não para irritar adversários.
Enquanto o país estava apreensivo diante da recuperação do presidente após as cirurgias delicadíssimas a que foi submetido devido ao atentado que sofreu, nosso mandatário fazia questão de citar o partido político ao qual o criminoso havia sido filiado na maioria das vezes em que se dirigiu ao povo. Qual o sentido disso? Ele mesmo já foi filiado a um tanto de partidos que têm integrantes e ex-integrantes atrás das grades. E, mais que isso, por que dar tanta importância ao PSOL de seus desafetos locais? A população merece mais deferência que um partido específico.
Ah, mas o presidente da Repúlica não tem liberdade de expressão? Artista tem liberdade de expressão, mandatário tem postura para representar seu povo pelo mandato que lhe foi outorgado.
Juntam-se nessa falta de noção e compostura os filhos, que exercem poder na Presidência sem que o povo lhes tenha outorgado nada e, pior, de forma tão atabalhoada que mais atrapalha do que ajuda. No Ministério, além do episódio Bebianno tem o trio ternura que cria, com suas declarações lacradoras, praticamente um factóide ao dia, todos prejudicando a imagem da Presidência da República e tirando a tranquilidade que poderíamos ter para fazer o Brasil andar.
O mais recente é o ministro Ernesto Araújo, nosso chanceler, delirando sobre imprensa e Coreia do Norte enquanto Trump fecha um acordo com a China que pode ser uma bomba sobre as nossas exportações. Os chineses vão comprar agora dos norte-americanos muito do que compravam aqui no Brasil. Enquanto isso, o ministro das Relações Exteriores se dedicava a inventar fatos para defender a postura de subserviência que adotou, de maneira completamente desnecessária, perante os Estados Unidos.
Em deferência ao encontro de Trump com o ditador norte-coreano, fez a bobagem de dizer a um repórter que aquela ditadura não é tão fechada nem tão dura quanto a da Venezuela. Depois, para não voltar atrás no erro, tentou argumentar que a Venezuela é mais perto de nós. A estocada final foi o delírio de que a imprensa só passou a chamar de ditador o norte-coreano depois que Trump se encontrou com ele, antes chamava de líder. Pesquise no Google Trends: sempre as menções da palavra ditador foram muitíssimo mais numerosas na imprensa do que líder.
Aqui a grande questão é: qual a utilidade dessas declarações? Há quem bata palmas a cada uma delas, visto que o presidente da República tem um fã-clube considerável, mas a sucessão de bobagens ditas por alguns de seus ministros estão desanimando até alguns fanáticos. Ao Brasil interessa saber em que essa boa relação com Trump vai nos ajudar na questão do mercado que estamos perdendo para ele. Tem outra negociação em andamento? Cadê a palavra de homem público a ser dada para quem atua nos mercados que perderão espaço internacional? Estava ocupada inventando historinha sobre o folclórico ditador.
O outro integrante do trio é o ministro da Educação, Ricardo Vélez. Muito bom de dizer teoricamente as mudanças que pretende fazer, foi incapaz de mostrar um projeto prático com cronologia ao Senado.
Durante a audiência na Comissão de Educação, a única coisa concreta que falou foi sobre o programa facultativo para que escolas tenham administração da polícia ou das forças armadas. Fora isso, apresentou mais 6 pontos prioritários na Educação sem dizer como nem quando vai executar cada um deles. Não demonstrou ter avaliação de impacto financeiro de nenhuma das iniciativas apresentadas, ou seja, é impossível saber se há a possibilidade de executar o plano que venha a ser feito sobre as teorias.
A única ideia prática que o ministro repete é na área dos costumes: o ideal dos alunos que se levantam quando o professor entra – e que Ricardo Vélez considera sinônimo de disciplina – e o cumprimento da lei assinada por Lula e Haddad que obriga a cantar o Hino Nacional nas escolas. Sou a favor do resgate cívico, mas é realmente preocupante que essas sejam as prioridades do ministro num país que tem os indicadores educacionais que nós temos. O Brasil espera e merece uma revolução positiva na educação, não uma maquiagem.
A falta de ações concretas se soma a factóides declaratórios que transbordam o absurdo: dizer que brasileiro é canibal, que rouba assento salva-vidas de avião e mandar o fatídico e-mail para as escolas mandando ler o slogan de campanha do presidente.
Após, pela primeira vez na presente era democrática, emitir uma “sugestão” de doutrinação política a todas as escolas do país, adicionada à recomendação de filmar crianças e mandar para o governo, a tropa de choque da comunicação precisou entrar em campo para tentar legitimar o discurso de que as pessoas estavam contra o Hino Nacional. E daí mobilizou-se o debate sobre educação nas redes sociais dentro do campo do absurdo até surgir o argumento quase esquizofrênico de que “pode filmar criança alisando homem nu mas não pode filmar cantando o Hino Nacional”. Brasil, NÃO PODE filmar filho dos outros sem autorização expressa dos pais. Ponto final. Simples assim.
O ministro Ricardo Vélez tem duas propostas sensacionais que, se fossem sua prioridade de discurso, com toda certeza ganhariam adesão: priorização do ensino básico e descentralização à la Anísio Teixeira.
É verdade que até agora não há nenhum plano de como fazer isso acontecer mas, se pelo menos o debate fosse centrado nisso e não em declarações lacradoras, poderiam entrar na discussão pública ideias e modelos de viabilização. Há muito tempo o Brasil comete a injustiça de abandonar a educação básica e ter excelência apenas na Universidade Pública, o que compromete a igualdade de oportunidades no país. O destino é selado pelas escolas precárias, escapa-se dele por sorte e para ser a exceção que confirma a regra.
A questão da descentralização da administração é algo recebido muito bem por educadores e, se o discurso público do governo fosse centrado em temas como esse, a população também entenderia como a ideia de Anísio Teixeira fortalece as escolas, incentiva a participação das famílias na educação dos filhos, valoriza nossas raízes, otimiza recursos e expande as possibilidades. Se juntadas a esse projeto as escolas-parque colombianas, que o ministro conhece muitíssimo bem e que praticamente foram o centro da salvação das comunidades mais violentas, restaurando diversos aspectos da cidadania, temos uma chance real de revolucionar a qualidade da nossa educação.
A ministra Damares Alves, dos Direitos Humanos, é outra que não perde a oportunidade de abrir a boca para criar problemas desnecessários para o governo. É forçoso reconhecer que, no caso dela, declarações anteriores ao ministério, principalmente aquelas feitas durante cultos, foram mais problemáticas que após assumir o poder. Mas a clássica “menina usa rosa e menino usa azul”, com a bandeira de Israel em patamar mais alto que a brasileira virou um hit nacional pelo despropósito. E, mais uma vez, surge um debate completamente desnecessário e infrutífero.
O ciclo do debate em torno de declarações bizarras tem sido este: diz-se a bizarrice, os fanáticos defendem, a maioria percebe o despropósito, o governo volta atrás, os defensores ficam com cara de tacho e a culpa é da imprensa.
Não adianta tentar repassar para a imprensa a irresponsabilidade de ocupar os mais altos postos do Poder Executivo no Brasil e não controlar a língua. Os mandatários não têm o direito de ser boçais, extrapolam quando fazem isso representando todo o povo de um país. Talvez tenhamos nos acostumado demais aos choramingos petistas que empurravam para o mensageiro a culpa sobre os próprios tropeços de comportamento e discurso. Não é natural alguém que representa seu povo falar absurdos e depois cobrar que a imprensa finja que não viu porque se sente frágil.
O mais irritante no caso brasileiro é o tempo dedicado a falar coisas sem pé nem cabeça, sair em defesa de disparates e depois encontrar uma forma de pendurar a responsabilidade num terceiro, geralmente a imprensa.
Temos a Reforma da Previdência a ser negociada, um projeto muito corajoso do ministro Paulo Guedes que terá seus detalhes discutidos à exaustão e precisa o quanto antes passar a ser de domínio público. Da mesma forma que apresentou o projeto ao Congresso e se desculpou por ter votado contra a Reforma na última tentativa – o que foi muito bem recebido por parlamentares – o presidente pode usar seu poder de fogo na comunicação para informar aos brasileiros, na linguagem popular que ele domina com maestria, o que na prática se pretende para a Previdência.
O pacote anti-crime do ministro Sérgio Moro é outro tema na mesma situação: pode melhorar estruturalmente um dos problemas mais gritantes do país, só que é cheio de detalhes desconhecidos do grande público. O que faz o presidente? Em vez de dar importância a falar do pacote explicando ao povo, fica fazendo postagens lacradoras reclamando que terceiros não deram a divulgação que deveriam e ele, que deve ser vidente, sabe que foi por má-fé. Isso não tem sentido. O presidente é da área, sabe falar com o povo, poderia muito bem centrar seus pronunciamentos nas informações de que o povo precisa.
Dizer asneiras é um direito, mas sinceramente não creio que uma pessoa que se candidatou para governar um país ou aceitou servir seu país como ministro conserve esse direito enquanto dura o mandato. O cidadão fala em seu próprio nome, pode dizer a bobagem que quiser, mas os nossos representantes falam em nome de todos e em nome do país, têm a responsabilidade de calcular cada palavra na direção de realizar aquilo que o povo deseja na administração pública.
Esperemos que o Carnaval exorcize o espírito do caboclo falador que está alojado em setores chaves do governo. Ou que, se não fizer, o presidente o faça. Jair Bolsonaro já falou o que o povo queria ouvir, por isso virou presidente. Mas não foi eleito para continuar falando as mesmas coisas, foi feito presidente para realizar. O país aguarda que canalize a energia dos embates desnecessários para as mudanças desejadas e prometidas.