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Eles não têm moral para fazer a Reforma da Previdência

Na ponta do lápis, não há nada mais urgente no país que a Reforma da Previdência. Ela já era urgência quando foi prometida, com todas as letras, no discurso de posse de Lula em 2003. Agora caminhamos para uma inviabilidade matemática de pagamento de aposentadorias e pensões, se é que podemos realmente dar esse nome à miséria que o cidadão comum recebe depois de uma vida de trabalho e contribuições ao Instituto Nacional de Seguridade Social. Mas é fato que, em breve, nem isso vai dar para pagar sem um freio de arrumação.

Quando se fala de exigir ainda mais contribuições do cidadão comum ou em diminuir a já vergonhosa aposentadoria paga à maioria dos brasileiros, o problema não é negociar com o povo que, na verdade, pouco opina no final. O maior entrave à Reforma da Previdência é que seus artífices não têm moral para levá-la adiante. E não falo deste governo nem de nenhum outro específico, mas do fato de a Reforma ser feita justamente por aqueles que já se beneficiam de forma completamente injusta do Tesouro Nacional e não demonstram nenhuma intenção de deixar de fazê-lo.

Parlamentares que votarão pelo aumento da idade mínima, mesmo tendo sido sufragados para isso, não têm legitimidade para fazê-lo sem abrir mão da aposentadoria especial a que ainda têm direito.

O problema moral que temos agora é o mesmo enfrentado nos governos FHC, Lula, Dilma e Temer: o mandatário que pretende conduzir uma Reforma da Previdência que afetará a velhice de um país já cambaleante não larga o osso de seus próprios privilégios. É aposentadoria integral antes dos 60 anos, presidente investido do cargo mas que oficialmente está tão inválido que se aposentou, presidente que reclama da aposentadoria maior que de quase todos os aposentados do Brasil, presidente que não devolve o auxílio-mudança nababesco que recebeu para pagar uma mudança custeada pelo cidadão, incluindo esses mesmos aposentados que serão atingidos na Reforma.

Quando o Brasil renovou o Congresso mal olhou as biografias de quem pôs lá. Foi um ato desesperado para deixar clara a sede por correção e moralidade, recado que parece não ter sido entendido por políticos de carreira que conseguiram se eleger prometendo ser a “nova política”, ou seja, dentro das regras da mais velha política que temos no país. Ética e moral são tidas como luxo ou firula nos meios políticos, mas são valores caros à maioria da população brasileira.

O fato é que não dá para levar a sério qualquer proposta de alteração na Previdência Social vinda de quem é incapaz de abrir mão dos próprios privilégios e tem a cara-de-pau de dizer que eles são “direitos”. Não são. O principal valor que legitima o poder em uma República é o amor à pátria, segundo Montesquieu, que iguala essa virtude ao amor à igualdade. Um ato só tem legitimidade numa República quando parte do princípio da igualdade de todos os cidadãos, da garantia de direitos iguais e de regras corretivas das desigualdades sistêmicas enquanto elas persistirem.

Não dá para levar a sério um cidadão que fala em pagar menos de um salário mínimo a alguém que contribuiu durante anos para a Previdência social mas acha normais a aposentadoria especial dos parlamentares, governadores e da alta cúpula dos 3 Poderes. Estamos discutindo exigir mais e entregar menos ao cidadão que ganha um salário mínimo ao mesmo tempo em que Procuradores da República acham que têm o direito de abandonar seus postos especiais porque lhes foi cortado um auxílio-moradia que nem é usado para custear moradia e é maior que a quase totalidade das aposentadorias que discutimos aqui.

A virtude fundamental de um monarca é a honra. A virtude fundamental dos chefes de Estado e de Governo em uma República é a garantia da igualdade. É possível buscar todas as desculpas do mundo para projetos que emperram, mas a raiz é a falta de legitimidade do poder político que os leva adiante. Ninguém leva a sério a intenção de uma Reforma da Previdência conduzida por quem poderia abrir mão dos próprios privilégios mas não o faz. Todas as negociações passam a ser em torno de uma agenda paralela, dos interesses de cada um dos envolvidos, e não do interesse maior do país.

É possível argumentar que mexer nas altas aposentadorias não resolve o problema do caixa e seria um trabalho hercúleo de negociação. Entre o certo e o cômodo, a opção tem sido pelo cômodo, que é imoral.

Ainda que não seja a solução para o caixa, o fim das aposentadorias e pensões injustas e nababescas, muitas delas mantidas por decisões judiciais proferidas por quem espera ganhar aposentadorias e pensões injustas e nababescas, é a solução para dar um mínimo de legitimidade à condução da Reforma da Previdência, deixar mais claros os planos para a população e acalmar os ânimos de quem vai ser dar conta da penúria que pode vir a ser a própria velhice.

Tenho visto nas redes sociais uma infinidade de procuradores, promotores, deputados, senadores e juízes debatendo abertamente um tema polêmico: a diferença de idade mínima entre homens e mulheres. Todas as Repúblicas têm regras para combater desigualdades sistêmicas até que elas deixem de existir, já que o centro da vida republicana é a igualdade. Esses senhores pensam mesmo que o centro da vida republicana é o cinismo: como pode alguém que recebe a aposentadoria especial deles debater idade mínima de uma empregada doméstica que ganha dois salários mínimos?

Ao não dar a menor importância para ética e moral, nossos homens públicos estão às portas da falta de vergonha na cara. Tem realmente condições para abrir um processo contra alguém, julgar a vida alheia, fazer leis ou fazê-las cumprir uma pessoa que não tem vergonha de se achar no direito de receber uma aposentadoria nababesca enquanto milita por mais contribuições e corte nos proventos de quem ganha menos e tem muito menos condições de formar patrimônio ou investir para o futuro?

Quando o Brasil deu um basta nas urnas, buscava uma nova forma de agir do Poder Público, não uma nova forma de dar desculpas.

A nossa crise institucional é fundada na quebra do princípio mais elementar da República, o da igualdade. À medida em que as cúpulas dos 3 Poderes acreditam na existência de duas classes de cidadãos e vivem dentro da crença de que têm mais direitos e menos dever de das satisfação do que a média, estamos quebrando a própria fundação da República, da divisão de poderes, do sistema de freios e contrapesos. Não há casa que permaneça em pé sem fundação.

Vivemos a era da apoteose dos sem-biografia e da idolatria do amadorismo, em que esquizofrenicamente se dissocia o discurso da forma de agir de uma pessoa. Nenhum discurso é válido se não coincide com a biografia de quem o profere. Mas assim temos escolhido comunicadores, líderes empresariais, consultores e políticos.

Os concursos públicos, tidos muitas vezes como último bastião da moralidade, são uma espécie de realização do satírico “The Rise of Meritocracy”, de Michael Young. Não se exige nem se avalia nos concursos a vocação para o dever primeiro do servidor público: servir o público. Além disso, há distorções profundas no que se considera o método de seleção: nada garante que um juiz saiba julgar, que um promotor saiba processar, que um funcionário do alto escalão do legislativo saiba trabalhar como deve no parlamento.

O que se exige nos concursos públicos é um conjunto de conhecimentos genéricos, ensinados em determinados estabelecimentos frequentados por quem já tem status social, mais facilmente acumulados por quem não precisa trabalhar para se sustentar enquanto estuda.

O grande problema é que ter esses conhecimentos não garante que a pessoa saiba utilizá-los a favor do povo e essa é a única função do servidor público: colocar seus conhecimentos a serviço do povo brasileiro. É um problema central, de base, institucional. No discurso, fazemos a seleção dos melhores e mais preparados para determinados cargos. Na prática, fazemos uma seleção de quem aproveitou mais os cursinhos ou conseguiu furar a barreira de acumular conhecimentos aleatórios que, em sua maioria, não servirão para o exercício do cargo.

Pessoas que chegam assim ao serviço público fazem a cínica distorção de aplicar a tese de “direito adquirido”, típica dos contratos particulares, ao Poder Público. Como foram bem numa prova que não mede se são capazes de bem desempenhar o cargo que ocupam, se julgam detentoras de um quinhão do Estado, uma quantia determinada de dinheiro que lhes será paga até a morte e, em alguns casos, depois também, aos descendentes.

Não há propriedade ou direito acima do interesse da sociedade. Achamos normal que, por exemplo, se desapropriem residências, fazendas e imóveis comerciais para que a sociedade ganhe rodovias, ferrovias e usinas. É normal. No mundo todo o progresso depende de sacrifícios individuais em prol do coletivo. No entanto, essa regra não é aplicada quando não mais interessa à sociedade pagar um salário incompatível com o serviço prestado.

Quando, frente a problemas de caixa, após a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Poder Executivo tenta fazer ajustes no funcionalismo – lembre que o mundo do trabalho já sofreu uma verdadeira revolução -, o Judiciário reintegra. Aliás, o Judiciário, esse mesmo que estava julgando nossos destinos enquanto não tinha vergonha de embolsar o infame auxílio-moradia, reintegra até bandido de farda expulso pela própria corporação por infringir as leis: direito adquirido.

A única forma do Brasil mudar um dia é a educação. Fala-se agora em escolas militares sem lembrar que nelas o professor ganha quase 10 vezes a média salarial nacional. E continuamos pagando aos iniciantes nas carreiras jurídicas mais de 10 vezes o salário médio de um professor já com experiência.

A injustiça é a base da pirâmide salarial no serviço público. Como entender que promotores e procuradores sem nenhuma experiência de vida ou de trabalho – esses mesmos que fazem uma espécie de greve abandonando funções porque não têm auxílio-moradia – ganhem mais que os Coronéis das Polícias Militares, que acumulam décadas de serviços prestados sem saber se voltam para casa ao final do expediente?

Quando um sistema baseado em distorções tenta corrigir distorções só acaba produzindo novas. E, mesmo que o povo não faça todo esse percurso de raciocínio, não é imbecil como querem crer os que se julgam uma casta superior de cidadãos. O povo sente e sabe que não é o seu interesse que será atendido com uma Reforma vinda de um sistema que garante privilégios absurdos e inexplicáveis a quem tem dinheiro, prestígio ou poder.

Vivemos num mundo tão louco que esse tipo de discurso algumas vezes é lido das redes sociais como “esquerdista”, ainda que ele seja a diminuição do Estado e dos privilégios do alto comando estatal na sociedade. É, aliás, o mesmo discurso que faz com frases de efeito o ministro Paulo Guedes. Concorde-se ou não com ele, foi o único com coragem de falar dentro da Fiesp que eles não podem exigir corte de privilégios da CUT e querer manter os próprios. Também já acenou que não teria problema em uma Reforma da Previdência em dois turnos.

Já que a Reforma da Previdência é urgente, o primeiro passo seria adquirir legitimidade: todos os parlamentares renunciarem à aposentadoria especial a que têm direito – a começar pelo Presidente da República.

O Presidente da República e dois filhos receberam o infame auxílio-moradia, devolvido por inúmeros parlamentares simplesmente porque é indecente. A mudança de Jair Bolsonaro para o palácio onde mora foi paga pelo povo. Um de seus filhos sequer fez mudança e recebeu dois auxílios. É esse o homem que bate o martelo em 65 anos de idade mínima para aposentadoria, o que até meses atrás ele próprio dizia ser uma “desumanidade”. Por mais que ele tenha recebido os votos de milhões de brasileiros para fazer a reforma necessária, a auto-indulgência compromete a legitimidade para a condução do processo.

Se todo poder emana do povo e em nome dele é exercido, cabe a pergunta: em nome de quem são mantidas as aposentadorias especiais e os penduricalhos da alta cúpula do Poder Público? Em nome do povo? É óbvio que não. Passou da hora do apego a tecnicalidades para o apelo à vergonha na cara dos governantes e parlamentares eleitos com promessa de mudança: é preciso começar a Reforma da Previdência pelo corte na carne.

Um parlamentar que mostre ao povo a renúncia aos privilégios de aposentadoria obviamente é levado muito mais a sério ao falar de Reforma da Previdência do que um que, por exemplo, acumule salários, aposentadorias, tenha expectativa de aposentadoria especial e receba todos os penduricalhos indecentes que não são cortados por falta de moralidade pública.

Não somos mais uma corte, somos uma República. Tudo o que mina a igualdade acaba minando todas as nossas instituições. Os mais altos funcionários de países desenvolvidos vivem em apartamentos normais, se responsabilizam pelo próprio transporte, fazem check-in no aeroporto sozinhos, lavam louça, lavam roupa. Pode parecer bobagem, mas é civilizatório. Quem decide sobre a vida do cidadão comum mal imagina o que é a vida do cidadão comum, não entende o peso dos argumentos, o significado de eventos e regras do cotidiano. Os meninos da bolha têm muitas teses e pouca prática do que é ser um brasileiro comum.

Só há uma forma de fazer o povo aderir à Reforma da Previdência e topar que nossos velhos tenham ainda mais dificuldade para viver porque a matemática impõe: cortem primeiro todos os privilégios das altas castas do funcionalismo público.

Maquiavel dizia que se deve fazer o mal de uma vez e o bem aos poucos. Sinceramente, não vejo outra forma de cortar penduricalhos a não ser cortando. Também não vejo outra forma de começar que não seja pelo exemplo: o próprio Presidente da República e sua família. Ele não é apenas um mandatário, é uma figura chamada de “mito” por seus seguidores, que fez promessas de ser a centelha da mudança e da moralização do Brasil. Que comece demonstrando a virtude que sustenta as bases da República: amor pela igualdade.

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