Entre um vídeo impróprio e uma postagem de fake news traduzida pelo Cine Class, o presidente da República também tuitou comemorando as concessões na área de transportes que pretende fazer ainda no primeiro semestre. Mas, ao contrário dos questionamentos sobre Golden Shower, os feitos sobre este tema permanecem sem resposta. Até o ator José de Abreu, que virou líder político da esquerda depois que prenderam praticamente todos os outros, mereceu uma satisfação presidencial pelo Twitter. O procurador Júlio Marcelo de Oliveira, do Ministério Público de Contas, continua sem ser levado a sério mesmo depois que centenas de pessoas e várias publicações jornalísticas instaram Jair Bolsonaro a prestar atenção nas ponderações.
Há um defeito grave no edital da licitação da Ferrovia Norte-Sul, feito ainda no governo Temer, que pode favorecer a Vale. O pregão está marcado para o próximo dia 28.
O procurador, que ganhou notoriedade nacional pelo trabalho técnico no impeachment de Dilma Rousseff, fixou em sua conta a sequência de tweets com o alerta, feito de forma tão didática que até a pessoa que escreve barbaridades com erros de português na conta presidencial seria capaz de entender. Reproduzo:
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Presidente @jairbolsonaro, sobre a licitação da ferrovia Norte-Sul, peço que a reexamine com cuidado. Ela precisa ser revista urgentemente.
Foi desenhada no governo passado com todas as características para restringir a competição e favorecer a Vale ou uma empresa a ela ligada. Não há direito de passagem assegurado para o vencedor poder levar seus trens até os portos.
Isso afasta qualquer interessado que não seja ligado à Vale, que tem saída pelo norte, ou à Rumo, que tem saída pelo Sudeste, no Porto de Santos.
Como as obras na ligação com a Rumo vão permanecer com a Valec, por decisão do Governo Temer, empresas ligadas à Rumo não se interessarão pelo leilão, pois não sabem quando estarão concluídas. Resultado: a licitação está desenhada para a vitória de alguma empresa ligada à Vale.
Há ainda outros vícios graves em relação ao inventário de bens e responsabilidade pela correção dos passivos ambientais, entre outros problemas. Lamentavelmente, o TCU liberou a licitação, mas há recurso do Ministério Público de Contas aguardando novo julgamento.
O Ministério Público Federal também recomendou a suspensão da licitação.
Além disso, não há previsão de transporte de passageiros. Seu governo poderia ser para sempre lembrado como o governo que restaurou o transporte ferroviário de passageiros no país.
A meu ver, o Ministério da Infraestrutura deveria ser o órgão público mais empenhado em prover a população de todo o país, sem preconceitos regionais, de transporte ferroviário de passageiros. Milhões de brasileiros podem se beneficiar disso.
Será uma grande pena se os 100 primeiros dias de seu governo na infraestrutura forem manchados por uma licitação viciada. Que bom seria se essa licitação fosse muito disputada, com participação ativa de grupos nacionais e estrangeiros, mas como está, não haverá disputa.
Vossa Excelência pode corrigir esse erro antes que se consume. A continuidade da licitação nesses termos será um erro colossal, com consequências danosas para os próximos 30 anos do país! Como brasileiro, peço que não deixe isso acontecer.
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A concessão é de um trecho de 1537 km entre Porto Nacional (TO) e Estrela D’Oeste (SP) por 30 anos. O valor mínimo do lance, de acordo com o edital da ANTT, é de R$ 1,35 bi, mas estima-se que a outorga será de R$ 2,7 bi. Todo o edital fala apenas em transporte de cargas, estimando uma demanda potencial de 1,7 mi de toneladas ao ano a partir do ano que vem, chegando em 2055 a 22,7 mi de toneladas por ano. Não há previsão para transporte de passageiros e o direito de passagem aos portos de Santos e Itaqui depende de assinatura de termos aditivos em diversos contratos do governo: VLI, VALE, Ferrovia Transnordestina Logística, Rumo Malha Paulista e a MRS.
O nó logístico de que fala o procurador é explicado pelo trajeto completo da Ferrovia, que foi dividida em trechos diferentes, concedidos a várias empresas. A norte-sul interliga o porto de Santos ao de Itaqui, no Maranhão. O primeiro trecho, o Tramo Norte, liga Açailândia (MA) a Porto Nacional (TO), tem 720 km e é operado desde 2007 por uma sub-concessionária, a Ferrovia Norte-Sul S.A. e não entra na concessão. A concessão original é da VALEC, que mantém o negócio, mas não conduz as operações. Ou seja, quem quiser a saída da carga pelo porto de Itaqui vai precisar negociar os aditivos de contrato com a empresa, cuja concessão não prevê nenhuma obrigatoriedade de dar passagem ao concessionário dos outros trechos. Esta concessão que gerou uma subconcessão é a última feita no setor ferroviário do Brasil, há 12 anos.
A VALEC faz a operação comercial do trecho seguinte, o Tramo Central, desde 2015. Ele cobre os 855 km entre Palmas (TO) e Anápolis (GO) e tem também apenas movimentação de cargas, ainda que tenha capacidade para transportar passageiros em uma região mal servida por estradas. Este pedaço já entra na concessão. O pedaço seguinte ainda está em obras e o governo Temer decidiu que elas ficam a cargo também da VALEC. Ou seja, a interligação real depende não apenas de modificar um contrato que a VALEC tem há 12 anos mas também do ritmo das obras no trecho entre Ouro Verde de Goiás (GO) e Estrela D’Oeste (SP), que até tem alguma previsão contratual mas, na prática mesmo, acaba dependendo dos interesses da empresa.
De Estrela D’Oeste até o porto de Santos há uma outra concessionária, a Rumo Malha Paulista. Como diz o procurador Júlio Marcelo de Oliveira, as empresas ligadas à Rumo, que já tem a saída pelo Porto de Santos, ficam em desvantagem se entrarem na concorrência porque o grande interesse, que é a saída por mais um porto, esbarra naquilo que a VALEC decidir fazer da vida. Além de ter de terminar o trecho, ela ainda precisa entregar o projeto do Pátio Sudoeste de Goiás, que é anunciado como o maior pólo de carga da Ferrovia Norte-Sul, perto das cidades de Rio Verde, Santa Helena, Jataí, Edéia e Quirinópolis. Na prática, sem a entrega feita pela VALEC, não há motivo para ninguém na outra ponta da ferrovia querer a concessão. Obviamente as favorecidas são as empresas ligadas à Vale.
O edital chegou a ser analisado pelo TCU, ainda durante o governo Temer. Houve recomendações de mudanças, mas não foi barrado pelo Tribunal de Contas da União. Bolsonaro não é obrigado a fazer as mudanças, mas qual o interesse de manter toda a malha rodoviária central do Brasil nas mãos da Vale, justamente após Brumadinho?
Some-se à dificuldade da concorrência um vício que torna ainda mais esquisito o favorecimento da Vale nessa concessão de 30 anos: a responsabilidade pela correção dos passivos ambientais. Pelos últimos fatos ligados à empresa, passivo ambiental é uma especialidade da casa. Seria coerente ter cuidado redobrado com o tema num edital que, segundo todas as análises técnicas, favorece a empresa. No entanto, é justamente o oposto. Existe uma confusão que pode deixar o passivo ambiental no colo da viúva, o Erário Público. Se nem quando há previsão legal de ressarcir pelos danos, como no caso de Mariana, a empresa paga o que deve e faz a prevenção adequada, avaliem com uma colher de chá dessas.
Outro ponto da concessão que ninguém entendeu é a confusão quanto ao inventário de bens. Quando se concede algo à iniciativa privada, a praxe é que o Poder Público faça o inventário inicial, antes da concessão, e o final, daquilo que a empresa está entregando de volta. A empresa é contratualmente responsável por entregar determinadas modificações, fazer manutenção e devolver tudo ao Poder Público em perfeito estado. Neste edital há uma jabuticaba bem azeda: o inventário de bens fica a cargo do concessionário. Ou seja, quem recebeu a concessão é que atesta quais bens recebeu, as obras que fez, o que está devolvendo e em que Estado, sem nenhum tipo de fiscalização. O governo Temer foi alertado da distorção e fez vista grossa. Agora, o governo Bolsonaro também foi alertado e se soma ao pelotão da vista grossa.
Outro ponto importante é o destino que se pretende dar à malha ferroviária brasileira nos próximos 30 anos. Colocando essa licitação na praça dia 28, o presidente Jair Bolsonaro decide que não haverá transporte de passageiros pelas nossas ferrovias durante os próximos 30 anos. Se algum outro governo – ou até mesmo o dele – quiser mudar essa realidade, vai pagar uma conta alta e enfrentar dificuldades judiciais quase intransponíveis para reverter a decisão.
Não consta que tenha sido feito qualquer debate sobre o tema pelo presidente da República, embora isso seja bem mais importante que xingar inimigos imaginários com menos poder do que ele.
Na prática, o leilão tem 3 interessados: a VALEC (surpresa!), a Rumo e a empresa russa RZD. A estrangeira é uma das maiores do mundo no ramo ferroviário e teria condições para trazer ao Brasil inovações para esse setor, que seria tão importante para o desenvolvimento do nosso país. No entanto, a empresa já avisou que vai desistir da participação. É a bola cantada pelo procurador: se você não tiver ligações fortes com a Vale, o jogo é arriscado demais. Não houve nenhuma negociação do Governo Federal com a Vale para que ela mude os termos da concessão anterior e permita a passagem por seus trechos até a saída marítima pelo Norte do Brasil, houve apenas uma imposição feita de forma estranha. É um edital novo que revê condições de editais antigos, algo que com toda certeza será contestado judicialmente.
Não é impossível fazer a mudança e tornar obrigatória a passagem das cargas dos outros concessionários pelos trechos da VALEC, a grande questão é quanto isso vai custar. Os cálculos para uma concessão que dura 30 anos devem levar em conta não só a previsibilidade de demanda, que já foi traçada pela ANTT, mas também os gastos obrigatórios. E o fato é que a pendência judicial fica incalculável. É impossível adivinhar o quanto isso demora para ser resolvido e, durante esse período, o quanto será perdido em demanda. Também não é possível prever qual será o gasto com o processo em si.
E por que a Rumo está se voluntariando na licitação? Simples, é do ramo e não vai desperdiçar a oportunidade, caso ela seja de um tamanho que cabe no bolso. Ninguém sabe direito como a VALEC irá se posicionar, isso é segredo empresarial. Na prática, a tendência da Rumo é fazer uma oferta bastante conservadora já que, se vencer a licitação, ela terá obrigatoriamente mais passivos de incerteza do que a VALEC, responsável pelas obras de um trecho a ser concedido. O governo diz que elas estão 95% prontas, mas não fixou uma data de entrega. Ou seja, entre as duas concorrentes apenas uma sabe e pode prever realmente quando a obra acaba.
Também para a VALEC há a questão contratual na saída pelo porto de Santos, já que o trecho final da ferrovia é controlado pela Rumo. No entanto, esse não é um empecilho para a oferta e essas dificuldades não impediriam a operação pela empresa, que já controla a saída pelo Maranhão e também o trecho norte de Ferrovias, que escoa os minérios vindos da Serra dos Carajás, no Pará. Ou seja, quem tem condições de fazer a melhor oferta é mesmo a Vale, a mesma empresa que administra com tanto zelo seus reservatórios de rejeitos em Minas Gerais e tem como principais acionistas fundos de pensão dos funcionários públicos.
O que o governo precisa para mudar o edital? Querer e, claro, apresentar serviço.
Se a resposta a esse problema fosse dada com a mesma eficiência e presteza das respostas chulas dadas pelo presidente em suas contas nas redes sociais, já teríamos uma nova licitação. Quatro meses são mais que suficientes para produzir um novo edital, corrigindo os vícios do anterior. O fato é que esse trabalho não foi feito. Talvez a prioridade tenha sido anunciar a ação nas redes sociais, talvez ninguém tenha dado ao tema a atenção que merece. É com a cegueira deliberada e o empilhamento de omissões que adiamos mais uma vez o novo futuro que o Brasil poderia ter nos transportes e na infra-estrutura. Uma pena.
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