Uma senhora pobre, de 63 anos de idade, ganha a vida vendendo balões de gás nas ruas da capital federal. Em pleno final de semana, é abordada por um casal de potenciais clientes, ambos a bordo de um carro de luxo, um Mercedes-Benz avaliado em R$ 220 mil. O problema é que querem desconto e não aceitam levar um não como resposta.
Cada balão custava R$ 10 e eles queriam 3, mas o motorista tinha apenas R$ 25 em cash. Pediu um desconto. Marina Izidoro de Morais disse que não poderia dar. Até aí, fato corriqueiro da vida. O desfecho, no entanto, mostra o nível de agressividade e violência que está arraigado na sociedade, sobretudo na porção acostumada a se safar de todas as coisas.
William Wesley Lelis Vieira, empresário, pediu que a amiga no banco do carona segurasse os balões e fechou o vidro. Arrancou com o carro. A idosa ficou presa nos fios dos balões e foi arrastada por 100 metros, uma das cenas mais impressionantes e desoladoras dos últimos tempos.
Na tempestade se conhece o marinheiro. Claro que o ponto de interesse da maioria das pessoas é um dono de carro de luxo que arrasta uma vendedora de balões por 100 metros no asfalto por causa de R$ 5. Mas lembremos das outras tantas pessoas que socorreram dona Marina e da vaquinha que, em menos de 24 horas, quase triplicou a meta.
Vale a pena lembrar que existem pessoas assim para afastar o desespero e também para não achar que o mal, mais chocante e barulhento, necessariamente impera.
A justificativa dada pelo empresário que cometeu esse ato bárbaro não seria cabível alguns anos atrás mas receio que tenha se popularizado no ambiente violento das redes sociais, onde muita gente incentiva o circo romano sem querer ou sem perceber.
Wesley disse que era só uma brincadeira.
O ato de arrancar os balões da mão da senhora, fechar o vidro do Mercedes-Benz e arrancar com tudo era uma brincadeira. Quanto a arrastar, ele alega não ter percebido e ter parado assim que se deu conta. Não é pequeno o número de pessoas absolutamente chocadas não apenas com o fato, mas com esse tipo de declaração.
Ocorre que ela não é incomum, apenas atinge agora publicamente um patamar de violência e crueldade além do que aceitamos. Mas a desculpa de ser apenas uma brincadeira, zueira ou "pilha" tem sido largamente utilizada para inúmeros atos de maldade pura praticados na maioria das vezes em bando nas redes sociais.
Acusam alguém de um crime, se tenta destruir a reputação de uma pessoa, inventam histórias para macular o caráter de alguém, fazem correntes de xingamentos e, se vítima reclama, partem para o cinismo do "não aguenta uma zueira".
Começou com as histórias inventadas, que eram sempre uma "pilha". Quem reclamasse da mentira era porque "não aguenta a pilha". Depois, com as pessoas dessensibilizadas, os bandos de sádicos partiram para acusar os outros de crimes, de desonestidade, de práticas de ilícitos. Basta reclamar para ouvir de volta: "não aguenta uma zueira".
Ultimamente, tem sido comum no jornalismo e no meio político receber ameaças de morte quando não se concorda - ainda que em um único ponto - com a agenda posta por grupos agressivos, muitas vezes ligados a políticos. Experimente reclamar. Nesse caso, a maioria fica chocada, mas ainda há uma minoria que nem assim percebe o mal, acredita que se faz uma denúncia dessas "para aparecer" ou porque não entendeu a piada.
Não existem duas vidas, uma online e outra offline. É uma pessoa, um conjunto de valores, um caráter, uma ética. Não tardaria para que a desculpa "é brincadeira" chegasse às atrocidades fora da internet.
Confesso que, por achar graça em algum momento, já me deixei levar por pessoas que até utilizavam alguns recursos do humor, mas cujo objetivo principal nunca foi fazer rir. A sede sempre foi pelo prazer de causar sofrimento e pela sensação de poder, a qualquer custo.
É preciso ter humildade para admitir que contribuímos para esse estado de coisas. Cada vez que se permite a destruição da vida de alguém, com ataques à reputação que causam uma série de abalos na vida profissional e familiar, aceitando a desculpa de que foi zueira estamos abrindo a porta para justificar atrocidades cada vez maiores.
Entre quem arrasta alguém com um carro e quem tenta destruir a vida de alguém pela internet, escudado no anonimato, existem algumas semelhanças e algumas diferenças. A diferença que mais salta aos olhos é o grau de violência física que o indivíduo é capaz de justificar como brincadeira. Quem faz online ou ainda não escalou ou não vai escalar para o embate físico.
Uma outra diferença, que às vezes não percebemos, é a rede de cumplicidade formada pelos agressivos online. Quando a agressão é física, existe a necessidade de mostrar a cara e assumir os próprios atos não só na Justiça, mas socialmente. Pela internet, é possível formar grupos anônimos enormes para purgar rancores e dizer que era só brincadeirinha. Conta-se aí com a cumplicidade das redes sociais, que não exigem certificação da identidade para criar um perfil, já que vivem de tráfego. Os incomodados que arquem com o prejuízo.
É do pouco que se chega ao muito e isso vale tanto para indivíduos quanto para a sociedade.
Ah, mas agora está proibido rir? Existe uma medida muito objetiva para diferenciar brincadeiras de atrocidades: o dano. Causou prejuízo à outra pessoa? Então é maldade pura, ainda que se tente travestir de brincadeira. Cesare Battisti ficou famoso como o terrorista que ria de suas vítimas agonizantes e isso jamais foi considerado humor, era atrocidade pura e simples.
Cada vez que capitulamos diante de maldades justificadas cinicamente como zueira, estamos dando o sinal verde, como sociedade, para que a próxima justificativa seja de um ato pior. Que a Justiça faça seu papel nesse caso específico. E que nós façamos o nosso para interromper esse ciclo de cinismo.
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