Foi por meio de ações – e não de discursos – que Hélio Bicudo marcou seu nome na história da democracia brasileira. Sua última grande companheira de trabalho foi Janaína Paschoal, professora de direito da USP. Juntos, protagonizaram o episódio largamente conhecido e debatido pelos brasileiros, o impeachment de Dilma Rousseff e também denunciaram Nicolás Maduro à Corte Internacional de Haia.
Ela sempre dedicou a ele a reverência que merece, coisa rara e delicada nessa fase da vida em que o corpo não mais acompanha a velocidade das ideias, como me disse uma vez outro jurista, Miguel Reale, pai do atual candidato a vice de Álvaro Dias.
Promotor público, teve a vida profissional marcada pela defesa incansável dos Direitos Humanos. Sua ação mais famosa foi contra o Esquadrão da Morte em plena Ditadura Militar, o que lhe rendeu – além das ameaças informais – a inscrição de seu nome no SNI.
O coroamento formal da carreira jurídica foi a glória de ser, no ano 2000, nomeado presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, quase aos 80 anos de idade.
Jamais deixou de militar politicamente e expor suas convições. Foi fundador do PT, discordou da complacência com a corrupção, desfiliou-se em 2005 e apoiou Marina Silva em 2010. Dedicou os últimos anos da vida a tirar do poder o partido que ajudou a criar e, para ele, havia desvirtuado.
O mais curioso é que a molecada da internet, essa que é curta de experiência mas boa de meme, chorou a morte de Hélio Bicudo, um homem de 96 anos de idade cujas realizações são, em grande maioria, coisa de outro tempo.
Se alguém foi responsável por apresentar o jurista às novas gerações, que carregarão sua memória, é a professora Janaína Paschoal. Não fosse o processo do impeachment, seria impossível que a moçada mergulhada em redes sociais soubesse dos serviços que ele prestou ao Brasil e preservasse com carinho sua memória.
Por isso pedi a ela que falasse da relação entre os dois e da imagem de Hélio Bicudo que ela vai guardar.
“Eu acredito que uma pessoa como o doutor Hélio Bicudo é um presente de Deus para um país. Porque é uma criatura de uma humildade ímpar, de uma seriedade ímpar e que, nos momentos mais difíceis teve coragem de tomar decisões. Ele não ficava esperando que os outros fizessem. Ele até dava oportunidade mas, quando não acontecia, ele fazia.
Eu, quando li o livro de memórias dele, depois até da gente se conhecer, eu fiquei encantada porque ele abraçou causas que, vamos dizer assim, não ensejavam nenhum ganho pessoal nem sob o ponto de vista material nem sob o ponto de vista do reconhecimento. Mas ele abraçou essas causas e lutou por elas, então é uma pessoa realmente abençoada.
Eu lembro um dos casos que ele, como promotor, decidiu enfrentar que dizia respeito a um médico que fazia abortos na cidade – não me lembro agora se era um homem ou uma mulher – mas ninguém queria mexer com isso, né? E ele, em nome da vida, dos nascituros, comprou a briga.
A mesma coisa com relação a uma casa de prostituição numa outra cidade, onde moças eram instrumentalizadas. Ele abraçava as causas que, muitas vezes as pessoas diziam: ‘por que você está mexendo com isso? Ninguém está te cobrando mexer com isso’. E ele enfrentava.
Eu sei que muita gente o conhece por ter combatido o Esquadrão da Morte, as causas de Direitos Fundamentais, essas mais famosas, mas na verdade ele abraçava as causas pequenas também, no sentido de não serem visíveis, não de serem pouco importantes.
E foi uma pessoa de uma grandeza ímpar porque é muito difícil alguém que reconheça erros ou que reconheça que eventualmente agiu para fortalecer quem não deveria. E o doutor Hélio o tempo inteiro me dizia que ele ajudou a criar o PT e que o PT se transformou em algo que ele não gostaria que existisse e, por isso, ele tinha um dever moral de ajudar, vamos dizer assim, a destruir o monstro que ele também ajudou a criar.
Então, era uma pessoa de uma responsabilidade muito grande. Quando eu o conheci, lembro que ele falou ‘nossa, demorou para alguém me procurar’. E, olhando para trás, eu vejo isso como um encontro de almas, é assim que eu me sinto. Muitas vezes o parentesco sanguíneo não revela toda a identidade que – eu acredito, nem todo mundo acredita – tem um parentesco espiritual. É assim que eu me sinto.
Ele parte numa semana para mim muito importante, uma semana em que eu tenho que tomar decisões e eu me sinto perdendo um conselheiro. Mas, por outro lado, eu fico pensando no bem dele. Quando a esposa dele faleceu, ele disse que não fazia mais sentido ficar por aqui, então eu oro com todos os brasileiros para que eles estejam se encontrando o mais rapidamente possível e que ele faça essa passagem com tranquilidade, harmonia e muita luz porque ele merece.” – Janaína Paschoal
Hélio Bicudo teve 7 filhos com Déa Wilken Pereira Bicudo, com quem foi casado por 71 anos.
Na era em que a coerência não é capaz de resistir a uma série de 10 tweets, o jurista demonstrou que é possível mantê-la intacta por quase 100 anos. Que sigamos o exemplo.