O QG onde Fernando Haddad aguardava para ser informado da derrota nas urnas parecia um universo paralelo fincado a alguns quarteirões da avenida Paulista. Dali, o candidato derrotado ouviria os fogos de artifício e a gritaria dos eleitores de Jair Bolsonaro comemorando a vitória do presidente eleito enquanto o PT tratava de não aprender absolutamente nada com a derrota.
No segundo turno, o candidato petista contou mais com os notórios anti-petistas que temiam Jair Bolsonaro do que com os próprios aliados. Recebeu apoios quase inacreditáveis, como o juiz relator do Mensalão e o procurador relator da Lava Jato. Enquanto isso, a presidente do partido dele, Gleisi Hoffmann, tratava de torpedear a campanha dizendo aos quatro ventos que quer tirar Lula da cadeia.
Ainda assim, nos momentos finais estava ali apenas a fina flor do petismo e da esquerda que governou o país nos últimos anos. Não os que estiveram apoiando a tentativa de virada de Haddad nem a esquerda raiz, aquele mesmo grupo que levou o PT ao precipício e a esquerda brasileira à rejeição popular.
Há um grupo que se apegou a discussões frívolas e se perdeu do povo. Mano Brown fez o alerta, que entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Enquanto a esquerda discute se mulher branca pode usar turbante, as mulheres procuram creche e hospital para o filho. Enquanto se digladiam pelo parto em casa, as mulheres querem médico para o pré-natal. Enquanto discutem se o cantor transexual famoso é chamado de “o” ou de “a”, o Brasil tem 60 mil assassinatos por ano. Esse grupo dedicado a defender quem já tem defesa e dizer que age em nome dos pobres estava lá, em peso, e gritou fascista na hora em que Jair Bolsonaro se pronunciou.
Fernando Haddad havia feito um esquema monumental para a transmissão de seu pronunciamento, bem diferente do planejado por Jair Bolsonaro: uma live em que apareceu até um copo descartável vazio. Era um palco, com câmeras que transmitiam para um satélite e o sinal poderia ser baixado pelas emissoras. Havia um palco para que outras personalidades o acompanhassem. Tudo com som e iluminação profissional.
Às 19h o TSE divulgou a primeira parcial e não havia mais dúvidas: Jair Bolsonaro era o novo presidente eleito. Os petistas fizeram silêncio. Poucos minutos depois, houve o anúncio de que Fernando Haddad iria se pronunciar em 10 minutos. Logo em seguida, inicia-se a live de Jair Bolsonaro. Até agora não entendi o que houve na comunicação entre os dois: se realmente Fernando Haddad decidiu não ligar para o vencedor ou se ele falou rápido demais, sem esperar a ligação do perdedor. Minha opinião: jamais saberemos.
O fato é que, em seguida, Fernando Haddad fez seu discurso jogando fora a oportunidade que a história lhe deu de ser magnânimo. Não há duas. Contaminado pelo ambiente que o rodeava, caiu na tentação de falar apenas para seus 45 milhões de eleitores, esquecendo que um estadista sempre fala para todo o povo. Ensaiou o discurso de voltar a falar com o povo sem parabenizar ou desejar um bom governo ao presidente da República que este povo havia acabado de escolher. Não reconheceu a vitória e sequer citou o nome de Jair Bolsonaro.
Há quem diga que ele está certo, dado o nível da campanha que Jair Bolsonaro fez contra ele. Eu considero triste quando o homem público determina suas ações pelas dos outros, reage quando tem a oportunidade de agir e deixar sua marca na história. Aquele era um momento histórico em que Fernando Haddad foi menor do que poderia ter sido. No dia seguinte, fez um tweet desejando boa sorte ao novo presidente. Fez bem, sinaliza aos próprios eleitores a necessidade de pacificação do país.
No entanto, o principal erro, para mim, não foi deixar de citar Jair Bolsonaro, foi a absoluta ingratidão com quem emprestou credibilidade a uma candidatura que levava a reboque um presidiário e o maior escândalo de corrupção da história. É inacreditável que Fernando Haddad não tenha agradecido Marina Silva, Alberto Goldman, Joaquim Barbosa e Rodrigo Janot pelo apoio público que deram à sua candidatura. É um silêncio eloquente sobre o caráter do candidato e sobre a forma de pensar do partido.
Guilherme Boulos também não aprendeu nada com a voz rouca das ruas e o resultado das urnas, continua encantado com o som da própria voz e os elogios cotidianos e repetidos das pessoas que o cercam. Faz a jogada vaidosa e pouco estratégica de iniciar já uma oposição com protestos de rua contra Jair Bolsonaro, o que, na prática, fortalece a figura do presidente eleito e seu discurso contra movimentos como o MTST. Mas a manobra mantém o nome de Boulos em evidência o tempo todo e, quem sabe, arruma um mártir para justificar o discurso de interdição da democracia.
“Vamos resistir. Jair Bolsonaro foi eleito presidente, não foi eleito ditador, não foi eleito dono do Brasil. Então não cabe ele dizer se vai ter oposição. Terá oposição, terá resistência democrática.” – pregou Boulos.
O candidato à presidência do PSOL está há anos fazendo um movimento enorme por moradia, discursa pelo país inteiro, viaja, é performático, escreve em grandes jornais, frequenta a grande mídia, tem inimigos famosos, está na boca do povo. Ainda assim, teve menos votos que Luciana Genro. Ainda assim, perdeu a eleição para Cabo Daciolo, um sujeito que apareceu ontem com uma Bíblia embaixo do braço, foi a 2 ou 3 debates e subiu para um retiro espiritual em um morro. Nem assim Guilherme Boulos chega à conclusão de que é necessário rever o discurso ou o método dos protestos. Falem bem ou falem mal, falem de mim.
Há alas do PT que aprenderam tanto, mais tanto, que deixaram a política petista. É o caso de José Eduardo Martins Cardozo, ex-ministro da Justiça. Ele entende que a esquerda, neste momento, obviamente é oposição, mas tem uma ideia bastante diferente do que seja oposição quando o país precisa ser pacificado, precisa de união. Para ele, a prioridade é unificar o país, tarefa para a qual ele não crê que o presidente eleito esteja apto. No entanto, não prega oposição sistemática, prega união e vigilância.
“Nós, que temos uma visão da democracia, que defendemos o Estado de Direito, que defendemos a tolerância, nós temos de estar juntos nessa hora. E é uma questão de buscar não a divergência, mas buscar a convergência: todos os democratas, todos os que defendem o Estado de Direito devem estar juntos fiscalizando, vendo se realmente a nossa Constituição será cumprida e efetivamente se não haverá um retrocesso institucional.” – diz José Eduardo Cardozo.
Uma boa surpresa para ser o contraponto ao forte bloco de direita que se forma no Congresso Nacional é o presidente do PSOL, Juliano Medeiros, uma liderança jovem: tem só 34 anos de idade. Ali, num mar de gente gritando por Lula Livre, chamando Bolsonaro de fascista e querendo levar a oposição para a rua antes de o governo cometer o primeiro erro – que inevitavelmente irá cometer, como todos – ele pensa em vender seu peixe ao povo e faz uma espécie de mea culpa pela forma como a esquerda julgou várias pessoas que se tornaram eleitoras de Bolsonaro.
“Nem todo eleitor do Bolsonaro é um bolsominion, é um fascista, é alguém que odeia negro, que odeia LGBT, que odeia mulher. Tem uma parte do eleitor do Bolsonaro que é isso, mas não é a maioria. Nós vamos ter que encontrar com essas pessoas, dialogar com essas pessoas e mostrar para elas que a única saída para o Brasil é a saída por dentro da democracia.” – planeja Juliano Medeiros, presidente do PSOL
Se ele vai conseguir ou não – e se vai conseguir convencer seus companheiros de partido disso – são outros quinhentos. Mas é alentador ver que há na esquerda lideranças jovens preocupadas com problemas reais da população – e não apenas com problemas gourmetizados do segmento que se sente dono dos pobres – e disposta a ouvir e compreender os medos e anseios do cidadão comum.
Eu acredito que só a pluralidade de pensamento e o debate são capazes de nos tornar verdadeiramente livres. Também acredito que cada ser humano deve ser único e pensar de uma forma única, impossível de repetir, como creio que Deus planejou e criou. É só quando conseguimos manter o debate político em alto nível, colocando a população em primeiro lugar e com tolerância para todas as correntes ideológicas que respeitem a democracia que podemos dar a todos a liberdade de formar o próprio pensamento.