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A Protagonista

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Neonazismo, o poder das palavras e o ovo da serpente

Nenhuma barbárie tomou seu posto na história de surpresa. A violência se instala aos poucos, primeiro pela licenciosidade nas agressões verbais. De repente, o que era agressivo passa a ser o normal e se atira a primeira pedra. É aos poucos que as coisas evoluem para a perda da noção de civilização e o banho de sangue.

Uma comemoração dos atletas de pólo aquático em uma escola norte-americana está incendiando o debate público nacional. Os vídeos foram postados por um dos meninos nas stories do Instagram e depois sumiu. Só que os colegas baixaram, isso viralizou pelos grupos da escola e acabou chegando à imprensa. Era uma festa neonazista.

Os vídeos mostram 10 estudantes do ensino médio da Pacifica High School, que fica em Garden Grove, na Califórnia, fazendo a saudação nazista e cantando uma marcha feita para as tropas de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial.

É uma ironia triste do destino. A escola é muito conhecida pela ligação com a Marinha dos Estados Unidos, de quem recebeu uma âncora como doação. Além de ser famosa pelos esportes, também é famosa pela banda marcial formada pelos alunos. No entanto, em vez de seguir os passos daqueles que pais e professores vêem como referência para os alunos, decidiram optar pelas músicas do lado oposto.

As Forças Armadas dos Estados Unidos foram essenciais para a derrocada do nazismo há menos de 100 anos. Hoje, alunos de uma escola ligada a esses militares, fazem festa tocando uma composição do nazista Herms Niel, que era músico do exército alemão quando Hitler chegou ao poder e, por ter se tornado um grande apoiador do nazismo, foi um dos principais compositores de homenagens musicais ao exército nazista e ao regime.

O choque também é pelo fato de a Califórnia ser tida como um dos estados mais progressistas do país. E a situação não é isolada: trata-se do segundo incidente na mesma região. O anterior foi numa escola de Orange County, famoso no Brasil pelos reality shows e seriados. Naquele, os alunos estavam jogando "Beer-Pong" com canecas dispostas em forma de suástica. E, assim como os colegas da outra cidade, cumprimentavam-se com saudações nazistas.

Temos, nesses tempos de agressividade, tentado nos confortar com soluções mágicas. Há quem se convença de que são apenas moleques falando bobagem, na ilusão de que não fazer nada para enfrentar um problema é a solução perfeita. Não é. Infelizmente, se alguém incorpora canções e saudações nazistas em seu cotidiano, necessariamente foi pesquisar o assunto e se identifica com as pessoas que escureceram o mundo com uma barbárie que ainda dói na alma de milhares de famílias.

Ninguém faz um convescote nazista por acaso e também não se chega a essa decisão do dia para a noite. Detalhes ignorados pelo caminho foram consolidando na cabeça desses jovens a ideia de que era aceitável se comportar assim, pelo menos para o grupo com o qual convivem.

Para mim, a grande questão é: somos capazes de identificar os sinais do caminho da barbárie antes de chegarmos a ela?

Por essas coisas da vida que não se explicam, a resposta me veio de zap. Uma amiga querida mandou um vídeo do respeitado jurista senegalês Adama Dieng, que foi ministro da Suprema Corte de seu país e atuou no julgamento internacional dos crimes de guerra em Rwanda. Hoje, ele é assessor internacional da ONU para prevenção do genocídio.

Se o poder da palavra faz tanto sucesso nas prateleiras de auto-ajuda, talvez devêssemos dar alguma atenção a ele quando o tema é conflito. Faço questão de transcrever o vídeo:

"Todos devemos lembrar que crimes de ódio são precedidos por discurso de ódio. Todos temos de lembrar que o genocídio dos tutsis em Rwanda começou com discurso de ódio. O Holocausto não começou com câmaras de gás, ele começou muito antes, com discurso de ódio. O que nós estamos vendo em Myanmar contra a população rohingya também começou com discursos de ódio

Hoje, o que estamos testemunhando no mundo, com a ascensão do extremismo, seja na Europa, seja na Ásia, em todos os lugares; quando nós vemos o número crescente de grupos neonazistas e de grupos neofascistas; quando nós vemos a forma como migrantes e refugiados estão sendo difamados, nós devemos empenhar todos os esforços para combater o discurso de ódio.

Nós temos de ter em mente que palavras matam. Palavras matam como balas.

E é por isso que temos de fazer todos os esforços para investir em educação, para investir nos jovens, para que a próxima geração entenda a importância de viver juntos em paz. Temos de nos esforçar ao máximo para que ataques, como o que testemunhamos no Sri Lanka, numa igreja na Nova Zelândia que foi atacada, o que vimos em Pittsburgh, tudo isso tem de parar. E, para que isso pare, nós temos de investir mais em mobilizar a juventude.

Nós precisamos usar o verbo para que se torne uma ferramenta para a paz, uma ferramenta para o amor, uma ferramenta para aumentar a coesão social e a harmonia no nosso mundo, ao invés de ser uma ferramenta para cometer genocídios e crimes contra a humanidade." - diz Adama Dieng.

O poder da linguagem é o que nos diferencia dos demais mamíferos. Da linguagem vieram todas as evoluções e problemas tipicamente humanos. A linguagem é ferramenta que mexe com as mentes e almas, por meio dela Deus se instala em seus filhos nas mais diversas religiões. A linguagem molda o pensamento e é a forma de transformar em realidade os sonhos, para o bem e para o mal.

Pela palavra se começam todos os movimentos por um mundo mais justo. E é pela palavra também que são arregimentados os que, vez ou outra na história, transformam civilização em barbárie. Tenho a mais plena convicção de que somos capazes de reconhecer a diferença entre a palavra que constrói e a palavra que destrói. O problema é que minimizamos seus efeitos até que não seja mais possível fugir deles.

Temos chamado a pregação de destruição por apelidos interessantes: espontaneidade, piada, zueira, brincadeira de moleques. Isso não a enfraquece e nem nos fortalece. Para que um problema nos engula, basta fingir que ele não existe.

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