Não existe almoço grátis. Tive a oportunidade de entrevistar o então prefeito de São Paulo, João Doria, no auge da moda das doações de empresas para a prefeitura. Perguntei a ele se e como se deixava claro para doadores que não haveria contrapartida além do marketing da doação, já que seria ilegal. Ele me convidou a presenciar uma reunião em que esse tipo de tratativa era feita. Como esperava desde o início, era um convite da boca para fora que nunca se efetivou. Não sei se há contrapartidas ilegais ou não, só sei que a falta de transparência não faz bem nem a São Paulo.
Falo das doações porque elas estão no centro de uma boa briga pelo direito aos nossos dados. A cidade de São Paulo decidiu multar em R$ 1.639,60 todas as empresas que não fornecerem seus dados para uma empresa doadora da prefeitura.
Hoje, todos os gigantes da economia mundial vivem do comércio de dados. Imagine que sonho seria conseguir que um governo punisse financeiramente os cidadãos que não franqueassem todos os seus dados à sua empresa? Ah, mas agora vai entrar em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados, que proíbe abusos. E se esse mesmo governo isentasse, por contrato, a empresa de qualquer responsabilidade sobre os dados de seus cidadãos. É isso o que foi feito em São Paulo e está sendo questionado judicialmente pelo vereador Fernando Holiday.
A história toda começa com os problemas relacionados ao lixo em São Paulo e também com as doações empresariais ao município, apresentadas como cópia da tradição norte-americana, mas jamais regulamentadas com o mesmo rigor.
Vamos à questão do lixo. É um problema em São Paulo e em praticamente todas as cidades brasileiras, várias soluções já foram e são tentadas diariamente. Há, no entanto, uma regulamentação que ninguém entende muito bem como controlar: empresas que produzem muito lixo não podem jogar nas costas do Poder Público, precisam contratar uma empresa privada que faça o serviço. O problema é que ninguém sabe quais são exatamente as empresas que prestam serviço na cidade de São Paulo produzindo mais de 200 litros de lixo por dia, a medida que separa os grandes dos pequenos.
Não consegui entender de onde exatamente surgiu a medida dos 200 litros e qual a razão, mas é um corte vigente por lei na cidade há quase 20 anos. Lei é para cumprir e considero correta a medida de apurar quem está usando a coleta paga por impostos indevidamente. Meu problema é a ligação dessa medida com a doação dos nossos dados para uma empresa privada que diz não se responsabilizar por eles.
O prazo final para declaração de todas as empresas sediadas ou que prestam serviço na cidade de São Paulo foi ontem. Adivinha se o site estava funcionando? Claro que não. O empreendedor paulistano achou que o pior pesadelo seria o E-Social, mas conseguiram inventar uma coisa pior ainda. Como a divulgação foi insuficiente, muita gente descobriu na última hora e a maioria não conseguia se cadastrar, o prazo foi adiado para o dia 31 de outubro.
O prefeito de São Paulo, Bruno Covas, resolveu gravar um vídeo para explicar a história. Já vi 42 vezes e não consegui achar o pedaço em que ele explica ao contribuinte paulistano por que vai multar quem não colocar os dados da própria empresa em um domínio .com que não se responsabiliza por eles.
Recorro a uma thread no twitter do Marcelo Soares para explicar em detalhes essa ideia da prefeitura que, se bobear, pode acabar espalhada por todo o Brasil. E agora esqueçam a história do lixo, vamos falar só de dados pessoais, dinheiro, poder e jogo de interesses.
No ano passado, a prefeitura de São Paulo recebeu uma doação de software da empresa Green Plataforms Gerenciamento de Dados justamente para que fosse possível fazer o tal do CTR-E, Controle de Transporte de Resíduos Eletrônico.
É neste mesmo documento que a prefeitura resolve isentar a empresa de qualquer responsabilidade sobre os dados coletados pelo sistema CTR-E, já que ela irá utilizar a infraestrutura de terceiros.
Mas, apesar de não ter responsabilidade sobre os tais dados, a empresa poderá ficar com eles para toda a eternidade. Isso mesmo! Essa cessão do software para a prefeitura dura 7 anos mas os dados das empresas ficarão nas mãos deste empresário até o final dos tempos e a prefeitura será responsável por organizar uma forma de repassar tudo o que tiver.
Este ano, a prefeitura anunciou em seu site que tinha agora uma tecnologia para melhorar a fiscalização dos grandes produtores de lixo. Em nenhum momento o texto informa a relação deste avanço tecnológico com a doação do ano anterior ou com a obrigatoriedade de todas as empresas da cidade cederem seus dados a um site privado, que não é da prefeitura, mas de um particular.
O site em que as empresas paulistanas precisam se cadastrar não é um .gov, é um .com. Isso mesmo, é um site que tem dono. Coincidentemente, o dono do site do CTR-E também é o dono da Greening Gestão Ambiental, cujo endereço é o mesmo da Green Plataforms Gerenciamento de Dados, doadora do software para a prefeitura.
A história contada pela prefeitura gira toda em torno da necessidade de recolher o problema do lixo. O que fica difícil entender é por que a empresa pede no site dela dados que não têm nada a ver com essa história - e a prefeitura obriga o paulistano a fornecer esses dados sob pena de multa.
Por que é necessário informar o número de colaboradores, o uso mensal de energia elétrica, a área total do imóvel e a área construída? Pode até parecer que existe correlação entre esses dados e a produção de lixo, mas não é bem assim. Além disso, o único dado que a prefeitura diz querer coletar é relacionado ao lixo, ou seja, Bruno Covas deve explicações sobre o resto do formulário.
Dados dos cidadãos são o grande negócio do século XXI. É lícito lucrar com eles e cada um tem o direito de ceder o que quiser, mas não é nem legal nem moral a busca por fazer com que os próprios atos deixem de ter consequências.
O prefeito Bruno Covas, sob o argumento de melhoria ou modernização da gestão, pode obrigar todos os empresários que têm sede ou prestam serviços em sua cidade a ceder dados para uma empresa que não se responsabiliza por eles mas quer ter posse deles para sempre? E, mais importante, pode fazer isso sem discutir com a população?
Meu foco no caso de São Paulo é porque trata-se da minha cidade, sede da minha empresa, que tem a faca no pescoço para compartilhar seus dados com um empresário que eu nem sei quem é. Mas pode virar moda. No pacote de privatizações proposto por Paulo Guedes estão empresas estatais às quais somos obrigados a ceder nossos dados para viver dentro da legalidade. É necessário discutir o que será feito desse material.
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