Mal consegui falar sobre o assassinato dos 10 meninos do Flamengo. Sou mãe de um menino que ama futebol e seu clube do coração, é quase impossível enxergar a notícia no meio do pior pesadelo que poderia me vir à cabeça. Não consigo imaginar a dor dessas 10 mães e como vão tocar em frente à vida depois dessa brutalidade. Talvez por isso tenha me recusado num primeiro momento a esmiuçar, como é meu dever de ofício, a questão dos alvarás. Precisa mesmo de alvará para saber se um lugar é seguro ou não para 10 adolescentes dormirem? Não.
Diante do impacto da tragédia só nos restam as tecnicalidades, as formas objetivas de contrapor as desculpas que já antecipamos porque brotaram aos montes em todas as tragédias evitáveis que ceifam vidas e sonhos impunemente no Brasil. Talvez devêssemos simplesmente deixar de lado a papelada e as formalidades. Às vezes tenho a impressão de que mais servem como desculpas para exonerar os responsáveis e o Poder Público do que como parâmetro de segurança.
Quem já tentou tirar um alvará de qualquer coisa sabe que parece uma gincana. A cada tragédia evitável em lugares que não tinham licença de funcionamento ou operavam fora das regras são criadas novas regras e exigências para que seja possível operar dentro da legalidade. A lista infinita de exigências muitas vezes é conflitante entre órgãos governamentais e os pedidos de vistoria são tantos que o Poder Público sequer consegue atender. Ainda assim, as tragédias vão se enfileirando.
Será que é necessário um bombeiro profissional atestar que um extintor de incêndio está a 1m15 do solo para que consigamos evitar que pessoas percam suas vidas sem necessidade? Estamos mesmo fiscalizando as coisas certas? Qual a consequência da fiscalização?
Temos tantas leis e regras que elas perdem completamente o sentido. Interdições e liberações são baseadas no cumprimento ou não de normas que nem sempre garantem que um local seja seguro para a vida humana. O resultado é a punição leve com o descumprimento. É tanta regra que fica impossível cumprir tudo, então não dá para descarregar punições pesadas em quem as descumpre. E daí surge o problema: qual dessas regras, se quebrada, resulta numa tragédia? Ninguém sabe direito.
O Estado-babá exige que haja fiscalização de vários órgãos diferentes antes de se abrir um negócio, qualquer que seja ele. Muita gente fica na fila até desistir e abre sem ter todas as licenças necessárias, ainda aguardando agendamento de fiscais. Embora seja comum, a falta de vistoria acaba sendo apontada em tragédias como algo tão grave quanto o descumprimento de regras básicas de segurança. Não é. Pouco importa se tinha o alvará ou não, há coisas que simplesmente não ocorrem se houver um mínimo de empatia e humanidade.
Não é uma fatalidade que 10 meninos sejam queimados vivos dentro de um contêiner enquanto dormem, é um assassinato. Quem colocaria o próprio filho para dormir em um contêiner tão evidentemente inseguro que até o Poder Público já tinha pedido o fechamento? Óbvio que esses pais não sabiam dos detalhes, como não devem saber os pais de meninos pobres que buscam seus sonhos a qualquer custo em tantos cantos do país. Mas outras pessoas sabem e tratam as vidas desses filhos como menos importantes que as demais.
A questão que fica é: se realmente havia o risco de morrer gente, por que colocaram 10 adolescentes para dormir lá? Precisa mesmo o Poder Público fechar para isso não acontecer?
A outra questão é por que o Poder Público não interdita o que tem alto risco. Talvez o risco real seja colocado em segundo plano nas fiscalizações, tal a coleção de pequenos detalhes que se necessita verificar. Certo seria estipular regras claras que devem ser obrigatoriamente seguidas para colocar qualquer negócio para funcionar. O responsável está ciente e, se vier a fiscalização e houver irregularidades, fecha até demonstrar que corrigiu. Não é o que ocorre.
Quando alguma irregularidade é encontrada pela fiscalização, há a possibilidade de defesa, de contra-argumentação e de alegar uma infinidade de direitos difusos, inferiores ao direito à vida, que podem garantir o funcionamento de um lugar ainda que multado, ainda que em desacordo com as normas mais básicas de segurança e de dignidade humana.
Aliás, é bom falar de dignidade aqui. Precisa vir o Poder Público dizer para não colocar adolescentes num quarto sem janelas? Quando o óbvio se tornou motivo de disputa?
Hoje, enquanto centenas de milhares de brasileiros honestos estão penando para cumprir a sobreposição de legislações que impedem a abertura de seus negócios, aqueles que nitidamente desprezaram riscos importantes estão à solta. Precisamos reverter essa cultura. Não é o Estado que precisa ir até cada cidadão adulto e obrigá-lo a ser decente, isso é o mínimo que devemos esperar de alguém. Quando estamos acostumados a fazer tudo até que o Estado imponha um limite, vivemos no terreno da permissividade.
Não falo aqui exclusivamente dos meninos do Flamengo. Outro incêndio, o da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), está impune até hoje enquanto se debatem quais regras foram infringidas, quem é o culpado de cada infração pormenorizada e qual o impacto de cada uma das transgressões no resultado final: 242 pessoas queimadas vivas e 680 feridos.
Lá, estava tudo certo com as vistorias, mas evidentemente havia as tradicionais gambiarras ou jamais se chegaria a um assassinato em massa dessa magnitude. Em 2012, um ano antes da tragédia, a Boate Kiss já havia sido condenada na Justiça por cárcere privado: impediu uma cliente de sair porque havia perdido a comanda. A moça recebeu R$ 10 mil de indenização e a prática prosseguiu, com total complacência social. As filas para entrar lá dobravam o quarteirão da rua dos Andradas mesmo depois que se sabia da prática criminosa.
No dia do incêndio, os seguranças continuaram fazendo a mesma coisa pela qual a casa havia sido condenada na Justiça e, pensando se tratar de uma briga, impediram que as pessoas saíssem quando o incêndio começou. A banda que se apresentava usou um sinalizador como efeito pirotécnico e, ao entrar em contato com a espuma de isolamento acústico, transformou a casa noturna em um forno. Não havia saída de emergência e os seguranças acharam coerente fechar a única porta que dava para a rua no meio de um tumulto.
É realmente preciso acionar a Justiça para que os donos de uma casa noturna, depois de condenados por fazer isso, entendam que não podem prender as pessoas em um estabelecimento?
Se é para ir a uma tragédia recente, vamos a Brumadinho. A empresa contratada para fazer avaliação de risco da represa já tinha tido uma suspensão da licença que conquistou na ONU porque, segundo a própria ONU, não era capaz de fazer laudos independentes se houvesse pressão do contratante. Um engenheiro da Vale havia dito anos antes, num trabalho acadêmico que, se houvesse gatilhos, haveria chance de liquefação. Todos sabiam que os rejeitos haviam sido operados durante 40 anos de forma que hoje se considera errada e arriscada. O que mais faltava para gerar uma dúvida razoável sobre a segurança do local?
Há outros dados: o refeitório abaixo da barragem ou as sirenes que não tocam, um povo que não foi treinado para se salvar caso as sirenes toquem e a existência de engenheiros que sabem do potencial assassino de uma barragem liquefeita mas que, por algum tipo de conveniência, se mancomunam para produzir um laudo que atesta a segurança do que não era 100% seguro. Tudo isso é parte do mesmo pacote, o da falta de valorização da vida.
Anos antes o mesmo comportamento de andar feito equilibrista no arame do risco levou tantas outras vidas e sonhos em Mariana. Vimos comoção, lamentos, discursos bonitos e, sinceramente, com que finalidade? No meu íntimo, talvez pela revolta, enxergo bem mais a vontade de se safar da responsabilidade que de confortar as vítimas e suas famílias.
Viver num país em que assassinato, dependendo do lugar e da quantidade de mortos, nem qualifica mais para notícia, tem seu preço para a sociedade. Perdemos a sensibilidade para as mortes evitáveis, para a sacralidade da vida humana, para o peso da barbárie que está sobre os nossos ombros. Admite-se um certo nível de risco à vida dependendo do benefício. E a medida do risco que se está disposto a correr parte de uma premissa completamente distorcida, a que minimiza a vida e valoriza os dividendos.
Justifica-se meninos dormindo num contêiner ou a liquefação de uma barragem monumental com a falta de certeza de que aquilo terminaria em morte. O raciocínio tem de ser o oposto: só se faz algo quando há certeza de que NÃO tem risco de terminar em morte.
É torcendo o raciocínio lógico, aquele que só admite riscos inevitáveis à vida humana, e escorando-se em uma pilha infinita de pequenas regras e seus fiscais que os responsáveis por assassinatos em massa vão se esgueirando pelas brechas da lei no Brasil. Uma hora é o laudo atestando a segurança de algo que sabidamente tem problemas. Tem também o caso de quem, pelo poder, sabidamente mantém instalações ao arrepio da lei e a despeito de uma pilha de multas acumuladas. Falamos ainda da prática infame de trancar pessoas até que elas paguem mesmo depois de ser condenado na Justiça por isso.
A decisão de pisotear sonhos e desperdiçar vidas parte de quem? Sempre de um conjunto de pessoas que escamoteiam riscos e não se importam com as incertezas porque, quando pesam, acham que alguns valores – principalmente os financeiros – são maiores que a vida. E não há rigorosamente nada que a nossa sociedade tenha feito para fazê-las pensar ou pelo menos agir diferente. Se pegarmos casos que já se perdem no tempo, como Mariana e Boate Kiss, o que aconteceu com os responsáveis? Mandamos a mensagem de que o comportamento deles é aceito pela sociedade.
No Rio Grande do Sul houve ainda o agravante da perversidade. Os servidores públicos encarregados de levar os assassinos à responsabilidade foram duramente criticados pelos pais das vítimas devido à morosidade. Não hesitaram: resolveram processar criminalmente, pelas críticas, quem já lidava com a perda trágica dos filhos. O processo deles foi julgado antes do assassinato dos jovens. O que, não no discurso mas nas ações, foi tratado como de mais importância para a sociedade?
Uma juíza de Minas Gerais resolveu dar um basta e, mesmo com uma sentença que mal se equilibrava, levantou a lebre de botar na cadeia quem topa o risco de matar os outros por conveniência. Mandou 5 engenheiros responsáveis pela segurança da barragem de Brumadinho para a cadeia. Nem esquentaram banco: será preciso individualizar a culpa de cada um. Depois, uma tragédia vai tomando o lugar da outra no noticiário e se perde o ânimo de fazer justiça.
Inevitavelmente todos os dias alguém vai se deparar com o dilema entre agir corretamente com menos lucro ou fazer uma gambiarra assassina. Por essas bandas, não é difícil que os corretos sejam vistos como ingênuos, estúpidos, incompetentes para aproveitar as oportunidades. Se o raciocínio for psicopata, sem se importar um segundo com a vida e os sentimentos dos outros, só haverá condenação social no caso de grandes tragédias que incitam um posicionamento público. Enquanto não morre ninguém, o bom é o que corre o risco mesmo sabendo que vidas estão em jogo.
Parece um raciocínio duro, pessimista e até um pouco absurdo. Admito que é, tanto quanto é a nossa realidade. Se julgamos com base em ter plena certeza do desastre e não desconfiança da possibilidade, mandamos o sinal de que é possível correr o risco. Quando não punimos quem põe a sorte à prova e despedaça outros seres humanos também mandamos o sinal de que é lícito correr o risco. E assim empilhamos os corpos das mortes evitáveis no Brasil.
Nas grandes tragédias nunca houve dúvida entre o certo e o errado, mas entre o certo e o conveniente. Precisamos parar de compactuar com os canalhas que optam pelo conveniente.
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