Não pode contrariar o líder. Pouco importam a conduta dele, a distância entre ações e discursos, o dano que causa aos demais, deve ser adorado, adulado, protegido. Em alguns momentos da história, a política substitui os princípios humanos mais básicos e até a espiritualidade. Uma pessoa é alçada ao patamar de ídolo que deve ser adorado sem nenhum questionamento, ganhando na alma de seus seguidores o lugar de Deus. Neste final de semana, o Brasil viveu o ápice da política da idolatria.
O governador da Bahia, Rui Costa, petista, resolveu dar uma entrevista à Veja fazendo um mea-culpa. Fez uma longa análise política mas esbarrou no mito bem no meio do caminho, quando avaliou que o erro do PT foi insistir na candidatura de Lula. "O certo era ter apoiado o Ciro Gomes lá atrás" foi a frase que entornou o caldo.
O PT partiu imediatamente para cima de Rui Costa. Fez uma nota oficial desancando o governador. É o mesmo partido que jamais fez qualquer reparo ao fato de, uma vez no poder, sua cúpula ter feito no Brasil o exato avesso da "ética na política", que passou décadas pregando. Mas, enfim, nada disso tem importância. Importa que não se pode contrariar Lula, um ídolo humano que merece todo tipo de subserviência, aos olhos do PT.
Pouco importa se o PT saiu esfacelado da experiência catastrófica de indicar Dilma para suceder Lula e da tentativa aventureira de uma candidatura de presidiário. Importa que não se pode contrariar de maneira alguma o líder supremo. Por isso, diz a nota do PT: " O eventual apoio do PT a Ciro Gomes, se à época já não se justificava porque nunca foi intenção dele constituir uma alternativa no campo da centro-esquerda, hoje menos ainda, dado que ele escancara opiniões grosseiras e desrespeitosas sobre Lula, o PT e nossas lideranças."
Quantos políticos petistas estão na cadeia por corrupção? Não sei, perdi a conta. Jamais se viu uma nota dessas contra nenhum desses. Mas a gente vê o linchamento quando Rui Costa questiona o endeusamento de Lula. Não é política, é idolatria
O governador da Bahia sentiu o golpe. Apressou-se a fazer no Facebook um post em que começa reclamando dos ataques recebidos por conta da entrevista, muitos deles feitos por gente que nem a leu. Mas cede e termina com um "Lula livre!", sinal para a militância de que não vai se rebelar contra o domínio do senhor absoluto das vontades dos petistas.
Fez, inclusive, este parágrafo constrangedor em que praticamente executa o procedimento de desculpas públicas, humilhação típica dos líderes inquestionáveis sobre os que ousam ter opinião. "Na última visita que fiz ao Presidente Lula, em Curitiba, acompanhado do governador Wellington Dias, ele como grande Estadista que sempre foi, disse: 'Vocês têm muito o que mostrar. Falem, mobilizem, ajudem a mobilizar a juventude a barrar o desmonte da Educação; ajudem a mobilizar os trabalhadores contra a retirada de direitos e o desemprego; ajudem a mobilizar os brasileiros pela soberania do nosso País. Se alguns não defendem o Lula Livre, não tem problema. O mais importante é salvar nosso País do desmonte. Nós vamos provar esta farsa que foi o meu julgamento'. Também ouvi dele neste dia: 'Solidariedade é algo que não se impõe, é algo voluntário' ." - escreveu Rui Costa. Ele, que é uma liderança política capaz de ganhar o governo da Bahia no meio da maior crise do petismo não pode ter opiniões que não sejam inspiradas nas sábias palavras que o grande líder profere atrás das grades.
O PT demorou décadas para construir essa relação de obediência e subserviência total a Lula, que colaborou para construir um mito em torno da sua figura. Todas as vezes em que essa carta é usada tão publicamente, outra força política aproveita para escalar. O bolsonarismo também deseja construir uma relação de ídolo e servos com sua militância, mas o método a jato é mais rasteiro e, talvez seja menos eficiente.
No mesmo final de semana em que o PT botou suas manguinhas de fora lançando para cima de uma de suas maiores lideranças atuais a carta do ídolo Lula, o guru dos filhos de Bolsonaro, Olavo de Carvalho, grava um vídeo em que incita os seguidores contra a academia e o jornalismo, ao mesmo tempo em que propõe uma obediência cega, desvinculada de ideias e princípios. Não é coincidência: são dois tipos de idolatria política em disputa.
Muitos liberais e conservadores votaram em Jair Bolsonaro porque a prioridade era derrubar a hegemonia petista, com a imposição incômoda de obediência cega em substituição à liberdade de pensar e divergir. Pois bem, o pólo oposto da idolatria petista era outra idolatria, como aliás ficou bem claro não só durante a campanha, mas durante toda a vida pública de Jair Bolsonaro.
"Chega de militância conservadora, chega de militância pró-família ou pró-não-sei-quê. Tem de ser militância pró-Bolsonaro, apoiar o cara até o fim.", prega Olavo de Carvalho.
O PT demorou décadas para construir sua militância pró-Lula, que não se abala diante de fatos, trazendo à realidade o dito africano de que "o regime se instala quando não há fatos que contraponham as versões". A versão bolsonarista tem a semelhança de ser acatada na sua íntegra apenas por uma pequena porção dos apoiadores do governo enquanto cala os demais por medo ou conveniência. Há, nas duas forças idólatras, os covardes e uma grande massa de oportunistas, que fingem não ver os maiores desmandos para desfrutar de um naco do poder. São estes, na maior parte das vezes, que emprestam a credibilidade necessária para dar respeitabilidade a um ídolo político, por essência moralmente decadente.
A grande diferença entre as duas forças é a forma e a velocidade de construção da idolatria. Se a militância petista é mais experimentada e profissional para impor totalitarismo, a bolsonarista tem menos freios morais e se apresenta de forma mais agressiva e violenta. O PT construiu seu ídolo com o tempo, aos poucos, olho no olho e muito pé na estrada. O bolsonarismo conta bastante com a velocidade e com a militância virtual. Assim que foi dado pelo guru o sinal da necessidade de construir uma militância, uma das principais vozes da mídia bolsonarista lançou na internet um formulário para cadastramento dos militantes.
O vídeo citado é aquele em que Olavo de Carvalho diz que a prioridade do Brasil é combater o comunismo. Só depois viria o combate à corrupção, principal bandeira da campanha de Jair Bolsonaro à presidência da República. Para deixar claro que não é brincadeira, a militância já começou hoje mesmo os ataques ao jurista Modesto Carvalhosa, ícone da luta contra a corrupção no Brasil. Resta saber agora se o povo concorda com essa visão.
Marinheiro se conhece na tempestade. Quem cala - seja por medo, covardia ou oportunismo - é cúmplice da idolatria. Políticos não são ídolos, são servidores públicos. Chega de gente que quer convencer o Brasil do oposto.
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