No burburinho criado pela circulação intensa de informações via redes sociais, credibilidade tem sido um conceito diariamente revisto. Há uma tendência a se associar o discurso bem feito e bem amarrado – principalmente se for exatamente o que o interlocutor pensa – a um conceito completamente diferente, o de credibilidade.
A palavra vem do latim credibilĭtas + ātis: aquilo que é de confiança, o que é para acreditar. Não se trata de boa embalagem, mas de bom conteúdo, conceitos completamente diferentes.
Hoje, em Davos, Jair Bolsonaro resolveu falar de credibilidade. Num discurso tímido de 6 minutos – quando havia sido dado um espaço de 45 minutos para definitivamente brilhar e fazer o Brasil brilhar junto – caiu na armadilha da virtude auto-atribuída. Disse, frente a uma plateia de gente experimentada internacionalmente, ter a credibilidade para propor as reformas que o Brasil precisa. Quem tem não fala, quem fala está querendo se convencer de ter. Virtude auto-atribuída não é virtude.
Dizer, num fórum internacional, que nunca antes na história desse país montamos uma equipe de ministros qualificados não engrandece o governo que engatinha com dificuldade, diminui o Brasil e parece um daqueles arroubos lulistas de reinvenção da roda.
Foi muito boa a parte em que falou sobre meio ambiente e parcerias – tirou da frente as nuvens que o discurso mais populista e menos calculado poderia ter colocado. Também ponto positivo a menção às políticas econômicas de abertura e a confiança em parcerias multilaterais. Não foram utilizados os 39 minutos em que se poderia ter explicado como o governo brasileiro pretende implementar o que disse.
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Foi um discurso altamente palatável para o público brasileiro, principalmente militante, que idolatra a superficialidade e não se preocupa com a relação entre atos e palavras. A bolsa caiu 1000 pontos logo na hora subsequente à fala. O objetivo de apresentar uma nova fase da economia brasileira no cenário internacional certamente não foi cumprido mas, como sempre, o presidente da República não deixou órfã a militância mais aguerrida, falando de assuntos que podem não fazer nenhum sentido para os investidores internacionais, mas aplacam com uma larga dose de discurso – não prática – ideológico os ânimos de quem está bronqueado com a República dos Filhotes.
E toca falar, lá em Davos, sobre “bolivarianismo”, usando a palavra à la Chavez, o que deve ter feito mais uma vez Simón Bolívar revirar no túmulo. Fala-se ali de governo de direita que tirará o ranso esquerdista e, como consequência, fará política sem ideologia. Não faz nenhum sentido para alguém interessado na economia do país mas é exatamente isso o que espera parte da militância.
O presidente Bolsonaro continuou em clima de campanha. Em vez de aproveitar a presença em Davos para estreitar relações ou dar início a conversas com atores internacionais, de forma bilateral ou multilateral, o presidente preferiu a publicidade do homem comum, que inevitavelmente ficará cansativa como a publicidade do herói sem diploma universitário feita por Lula. Temos lá as fotos do presidente da República no bandeijão de Davos mandando ver um sanduba como se fosse algo bom, espartano. Na verdade, a gente não paga uma fortuna na viagem para ter essa dose de tempo perdido. Mas ok, vamos pedir ao mundo que não comece a cobrar tão cedo, né?
Triste coincidência, a equipe econômica incensada no discurso presidencial resolve anunciar internamente uma taxação de dividendos bem no dia em que o presidente da República abre o Forum em Davos. Óbvio que a bolsa iria cair e inevitável que os estrangeiros relacionem ao discurso.
Circulam pela internet, nos mais diversos fóruns de jornalismo econômico, imagens semelhantes a essa abaixo, apontando o momento em que o presidente Bolsonaro começa a falar e a subsequente queda livre do mercado no Brasil. Não informam, no entanto, que acumula-se com o discurso um mal planejado anúncio de taxação dos investidores, que não esperavam pela medida e podem ter reavaliado suas posições.
O pilar de sustentação do discurso de abertura econômica é ter a credibilidade para promover mudanças. Que credibilidade se tem com menos de um mês de governo? Ainda que não estivesse soterrado pelo caso Queiroz e o favorecimento do filho do vice, além das reações infantilóides aos críticos – também governados por ele – via twitter oficial do Presidente da República, o máximo que um presidente com um mês de governo tem é discurso.
Credibilidade terá se, ao longo do tempo, comprovar que suas ações corroboram suas palavras.
Aqui é capaz de esse papo de credibilidade sem necessidade de ação ou experiência colar em alguns setores. Temos uma gama enorme de especialistas nos mais diversos assuntos que jamais foram chamados a comprovar suas teorias e jamais tiveram qualquer tipo de experiência que dê um mínimo de credibilidade a palavras bem engendradas e que soam como música aos olhos de quem concorda com eles.
Confesso que, após ver o discurso do presidente Bolsonaro recebendo o mandatário argentino Macri, bem pensado, feito sob medida para a ocasião, apresentado numa postura de Chefe de Estado, eu sinceramente esperava um passo adiante nesse primeiro compromisso no exterior, não um passo atrás. O conteúdo do discurso, ou melhor, a falta dele, chega a me causar pena. Por que não adotar a mesma linha da recepção a Macri? Por que não falar de elementos e planos concretos? Mais uma para a caixinha do jamais saberemos.
Dizer aos investidores internacionais que os planos econômicos estão centrados na confiança conquistada junto à população é bem arriscado justo no dia de um escândalo gravíssimo envolvendo milícias.
Queiroz passou agora a coroinha do gabinete de Flavio Bolsonaro. Já tem espírito de porco dizendo jocosamente nas redes sociais que, se bobear, o Maníaco do Parque era office-boy, a Suzanne Richthofen era recepcionista e o esquartejador de Goiás era contínuo. Uma grande injustiça. Mas a nota oficial publicada pelo filho do presidente da República é insuficiente, para dizer o mínimo.
Quando candidato, Jair Bolsonaro não quis comentar o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco. Meses depois, prende-se como suspeito o chefe de uma milícia criminosa e vem à tona que a mãe e a irmã dele trabalharam no gabinete do filho do então candidato. Mais: houve milicianos que, pelas mãos desse filho, receberam homenagens oficiais do Estado do Rio de Janeiro. Não é o melhor momento do mundo para usar a credibilidade do governo como garantia de nada, muito menos de medidas econômicas ousadas e dependentes do Legislativo.
O governo está apostando pesado demais da identidade ideológica, um tiro que pode sair pela culatra. E não digo isso pela experiência dos políticos, mas pela minha, de jornalista.
Não há discurso ideológico que resista ao confronto com a realidade: ou as palavras são corroboradas pela experiência ou não passam de espumas ao vento, imagem perfeita criada por Fagner para falar do que dura tanto quanto um golpe de vista. Hoje, aqui no Brasil, muita gente pensa que o problema da mídia é a falta de identidade ideológica com o público, centrar demais em temas progressistas num país conservador. Como toda definição simplista, parece certa e está errada.
Aqui não fazemos pesquisas de comportamento como essa periodicamente, mas o Pew Research Center, nos Estados Unidos, tem um departamento dedicado apenas às tendências em jornalismo. Já faz algum tempo que as pesquisas têm apontado o descontentamento dos Republicanos, mais conservadores, com a grande mídia norte-americana. A conclusão natural é que a maioria dos jornalistas é mais progressista e a questão ideológica passou a ser determinante. O ser humano é complexo: vai além disso a história.
Uma nova pesquisa resolveu perguntar tanto a Republicanos quanto a Democratas se eles se sentem representados pela mídia, se acham que a mídia os entende ou não. E aí veio a surpresa: a questão NÃO é apenas ideológica, mas de distanciamento entre a realidade dos que discursam e a do público que os acompanha.
Mas, até aí, o percentual é quase igual ao dos Republicanos que se dizem “muito interessados” naquilo que a mídia tradicional reporta: 24%. Ou seja, aqueles que estão muito interessados se sentem compreendidos pelos veículos de imprensa que acompanham, o que é natural. Não há no estudo uma relação de causa e consequência, ou seja, não sabemos se assistem porque são compreendidos ou se de tanto assistir se acostumaram e se dizem compreendidos. Sabemos que há a conjugação dos fatores: ter muito interesse e se sentir compreendido.
O problema está na outra ponta, a que se julga ser atendida de forma plena, a dos Democratas. Enquanto a maioria, 71%, está muito interessada na mídia, o percentual dos que se julgam não compreendidos é de 40%. Pode ser menos da metade, mas é muito significativo. Aqueles que supostamente têm sua ideologia respeitada pelos órgãos de comunicação e se interessam pelo trabalho deles se sentem compreendidos de forma errada.
Talvez o que se suponha ser o interesse do estereótipo do cidadão progressista, em pautas levadas às últimas consequências pelos meios de comunicação, não seja o retrato da maioria, mas de uma minoria influente.
O caso aqui é que simplesmente reverberar o discurso de uma ideologia não basta para ter credibilidade. Para que algo seja digno de confiança, de ser acreditado, deve inicialmente ter um poder de compreensão dos fatos a toda prova. Uma mídia que sequer compreende seu público e, de maneira autoritária, julga que compreendeu e lhe empurra goela abaixo um conteúdo que não é do seu interesse, talvez não seja exatamente o significado de credibilidade.
Os seres humanos são mais complexos que ideologias, que esquerda e direita, que conservadores e liberais. Há quem defenda que todas as relações humanas são políticas. Eu discordo. A dimensão dos seres humanos em que ações e relações são pautadas de outra forma existe e é maior ou menor de acordo com as particularidades de cada um. Os laços de amor, de afeto, de espiritualidade e de amizade, quando verdadeiros, extrapolam as divisões simples feitas pelos credos políticos.
A definição dos conceitos altamente subjetivos, paradoxalmente, se dá da forma mais objetiva possível. É subjetivo dizer que tal mídia se esforça para atender os interesses de seu público fazendo tal tipo de discurso. É objetivo perguntar a tal público se se sente atendido e verificar se o tipo de discurso realmente está sendo feito. Se estiver, não é ele que vai preencher o que o público quer de verdade e, portanto, não há um esforço real de compreensão.
Qual a relação disso com o presidente Jair Bolsonaro? Ele é o mandatário mais midiático que tivemos, um fenômeno inédito de adesão espontânea que, até o momento, se baseia apenas no discurso ideológico.
Não há como precisar o tempo que o discurso ideológico é suficiente para manter a adesão de quem, em algum ponto, vai começar a questionar a relação entre ações e discurso, as intenções por trás das falas, enfim, a credibilidade. Mas a chegada a esse momento não é uma questão de “se”, é uma questão de “quando”. Ele chegará. O que o nosso presidente da República terá no prato para o povo?
No caso da mídia norte-americana, se pensou que fazer uma refeição recheada de assuntos e análises pautados em ideologias progressistas seria suficiente para conquistar os progressistas. Não é, eles querem se sentir retratados, se sentir compreendidos. O modelo da idolatria do vazio tem limite de tempo: há que se apresentar serviço.
Se tem algo colocado muito às claras e sem nenhuma sombra de dúvida no governo Bolsonaro é a ideologia que ele segue. Não há meias palavras e ninguém desconversa, o tema é atacado e apresentado da forma mais didática possível aos que gostam e aos que não gostam. A grande questão é como esse discurso e essa ideologia serão transformados em ações de governo. Eu apostei que teríamos uma luz do conjunto da obra no discurso em Davos. Ainda não foi dessa vez.
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