Enquanto os representantes legais de Lula faziam negociações técnicas da entrega à Polícia Federal para a prisão decretada, o ex-presidente se refugiava em seu reduto primeiro, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – que agora tem uma varanda gourmet para a churrascada de espetinhos e carrinhos para carregar engradados de cerveja – era rodeado por uma aglomeração de pessoas que em nada lembram os petistas de primeira hora.
Eram, em sua maioria, pessoas convocadas pelo MST e pelo MTST, movimentos que cresceram durante os governos petistas mas que pouco ou nada têm a ver com a formação do Partido dos Trabalhadores e com as causas defendidas pelo Lula operário.
No carro de som à frente do prédio do sindicato, o microfone era alternado entre representantes da fina flor da sociedade brasileira, ostentando discursos de uma classe trabalhadora que conhecem de ouvir falar sem a empolgação que hipnotizava estádios de futebol como o da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, na longínqua década de 80.
Do chão, o que o povo ouvia era muito menos a palavra vinda dos líderes políticos que sobraram ao lado de Lula e muito mais a batucada de samba que mantinha a multidão interessada. Às 6h01 da tarde, Lula apareceu na janela para acenar para as pessoas que esperavam sua fala mas, experiente, preferiu não fazer parte do espetáculo.
Se agora é um paxá da esquerda perfumada, o mesmo Luís Inácio Lula da Silva já foi o operário que apareceu no Show de Calouros de Silvio Santos, na noite de 29 de dezembro de 1989, elegendo como prioridade para um governo petista a seguinte mudança de cultura:
O primeiro que nós vamos provar de concreto é que você pode colocar tranquilamente político corrupto na cadeia. (…) No Brasil, predomina a teoria de que é preciso levar vantagem em tudo. E nós vamos mudar isso dando exempl0 e dar exemplo significa acabar com a impunidade. (…) Porque um trabalhador, se ele rouba um pãozinho, ele vai preso e apanha. Um cidadão dá um desfalque de 400 Bilhões e está em Paris, gozando da nossa cara. Esse cidadão tem que ser preso, esse cidadão tem que pagar pelo desfalque que ele deu.
O Partido dos Trabalhadores de Lula ficou conhecido pelo lançamento do “Manifesto pela Ética na Política”. Tente encontrar. É mais uma entre as inúmeras histórias mal contadas da legenda. Na verdade, trata-se de um manifesto da sociedade civil na época da crise do governo de Fernando Collor.
O Movimento pela Ética na Política foi promovido pelo INESC, Instituto de Estudos Socioeconômicos, entidade criada em 1979. E 29 de maio de 1992 leu, no plenário do Senado, na presença de 900 pessoas, uma “Declaração ao Povo”, assinada por OAB, CNBB, ABI, PNBE, FENAJ, SBPC, Comissão de Justiça e Paz, Contag, Conselho Federal de Economia, Movimento Nacional dos Direitos Humanos, o próprio INESC e IBASE. Era uma carta simples e profunda:
O movimento foi rapidamente encampado como bandeira do PT na época do impeachment de Fernando Collor. Até hoje, nos livros de história e citações de cabeças iluminadas da política brasileira, o tal “Manifesto pela Ética na Política” consta como documento de autoria do Partido dos Trabalhadores. O caso é que, se o PT resolveu amalgamar-se às ideias que ali estavam inscritas, vale a pena relembrar que aquele conjunto de princípios continua válido para a sociedade brasileira até hoje.
A aplicação da lei a todos igualmente é o remédio contra a impunidade que revolta a nação e contra o descrédito das instituições. A apuração da verdade sem restrições se constitui em clamor de todo o povo brasileiro. Ao contrário das visões alarmistas, as instituições democráticas se fortalecem quando postas à prova, demonstram sua real eficácia independentemente de dificuldades conjunturais. – Declaração ao Povo “Manifesto pela Ética na Política”, 29 de maio de 1992.
É nesse espírito que foi forjada, durante anos, a imagem do Lula operário: o candidato que, vindo da pobreza mais pisoteada por elites sem princípios e que jamais tiveram de se curvar à lei, inauguraria uma nova ordem em que a lei vale para todos. Seja ironia ou tragédia, a prisão do Lula paxá da esquerda perfumada – essa que desdenha de pobres, mulheres e negros, dada a fazer chacota de tudo o que foi ou é caro à gente simples que forjou a base dos movimentos brasileiros de trabalhadores – é a realização do que pregava o Lula operário.
Humano, demasiadamente humano. O plano “Lula operário” seria perfeito se não estivéssemos falando de pessoas. É tão clichê que já virou senso comum a instrução clara que Maquiavel deixou escrita há séculos, repetida por Abraham Lincoln: o caráter do ser humano só se revela a partir do momento que ele tem poder.
Infelizmente para a nossa nação, as pessoas que chegam ao poder não conseguem manter a firmeza de caráter, se corrompem por pouco, são tentadas pelo conforto, pela vaidade, pelo dinheiro, pelo exercício nefasto do poder. E é dessa forma irônica que Luís Inácio Lula da Silva realiza sua própria profecia, é ele o primeiro ex-presidente da República a ter prisão decretada por crime de corrupção no Brasil.
Na trajetória melancólica do início ao final do processo, Lula escancarou o quanto o paxá matou os sonhos do operário. Jamais atendeu um único pedido ou convite da Justiça. Depois bradou entre lágrimas que a condução coercitiva era desnecessária e se autodenominou uma jaracaca. Então passou a valente de teclado e bravateiro dizendo estar louco para estar frente a frente com os juízes que o estavam condenando injustamente; quando esteve, colocou a culpa na mulher, Marisa, que havia falecido há menos de um mês.
O réquiem é uma tentativa melancólica de recompor as estruturas que fundaram o PT: Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e comunidades eclesiais de base. As pessoas que fizeram parte daqueles movimentos não estavam mais ali, foram expulsas pouco a pouco da alta cúpula da esquerda brasileira, que se gourmetizou e passou a desdenhar de tudo o que era e é mais caro a esse povo de quem a esquerda caviar tem nojo, apóia desde que obedeça e ataca com violência quando não se enquadra na sua ideia de ser dona dos pobres.
O Partido dos Trabalhadores que ali estava não era aquele de pessoas do chão de fábrica, famílias cristãs, padres de periferia, era o PT que debocha das práticas religiosas cristãs, que na última semana resolveu processar um procurador da República por dizer que ora e jejua, dizendo que ele é uma “figura patética”. Não bastasse, o fez no dia dos 50 anos do assassinato de Martin Luther King, pastor batista, pregador da fé seguida pelo procurador processado. Dias depois, os mesmos deputados que escarneciam da fé, sustentáculo da maioria das famílias brasileiras, subiam num trio elétrico para presenciar a missa de Lula, ele sim, cidadão com direito ao exercício público da fé, chancelado pelo mesmo PT.
A missa show é um réquiem melancólico do sonho, não de Lula nem do PT, mas dos milhões de brasileiros que consignaram seus votos na ideia de que tínhamos um grupo de pessoas com princípios e firmeza, atentas primeiramente ao povo, dispostas a lutar para modificar a ordem econômica e social. Não foi daquela vez e a chamada do show missa deixou claro o verso de Belchior: “eles venceram / e o sinal está fechado para nós”.
Fora Leci Brandão e Thaíde, que têm participação política ativa e outros motivos para se apresentar no Showmissa de Lula, os artistas que compareceram como apoiadores são ilustres desconhecidos do povo que Lula prometeu representar. São artistas queridinhos da “Vila Madalena”, representantes da tribo mais hipócrita, virulenta e preconceituosa de São Paulo. Lula derramou suas lágrimas após a fala de padres que não falam ao coração da massa que ali estava e realizavam uma missa para políticos que não frequentam igreja e passaram a semana debochando da fé cristã.
O destino é implacável com aqueles que não estão à altura do papel que a eles foi reservado pela História.
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