Difícil entender se o mais chocante na foto da professora são as marcas no rosto, o inchaço de tanto chorar ou a expressão cortante de desolação. Vanessa Rosa é professora de criança pequena, em Carapicuíba, cidade da grande São Paulo que mescla condomínios de luxo com muito verde e conjuntos habitacionais que parecem pombais, coalhados de meninos que têm como único lazer a rua e os botequins de esquina. Levou uma surra por não deixar um aluno sair com uma mulher que não tinha autorização para levá-lo.
Até desses cantos do país e mesmo sob a sombra da criminalidade brotam personalidades de destaque. É da Cohab de Carapicuíba, um dos maiores projetos de moradia popular do Brasil, que saiu o vereador Fernando Holiday, o primeiro do Movimento Brasil Livre, menino estudioso que ganhou espaço entre moços bem nascidos da nova política graças à oratória. Obviamente que o esforço dele foi descomunal, mas crianças não se fazem homens sem ajuda. Professores da rede pública e famílias persistentes tentam dar às crianças um futuro melhor e muitas vezes conseguem.
Quebrar o espírito dos professores e permitir, como temos permitido, que a violência seja tida como algo normal na escola é a forma mais fácil de aniquilar o futuro.
Vanessa Rosa dá aulas na Escola Municipal de Educação Infantil Deputado João Hornos Filho, que atende 652 estudantes do 1o ao 5o ano do Ensino Fundamental e 17 em Educação Especial. É uma estrutura bem simples, segundo aponta o recorte do Censo Escolar feito pelo QEdu, startup da Fundação Lehmann. Não tem biblioteca nem sala de informática, faltam também quadra de esportes, laboratório de ciências e sala de leitura. O maior luxo é a internet de banda larga, providenciada para 10 computadores, metade para alunos e a outra metade para professores.
Uma mãe foi buscar o filho, mas queria levar também outro garoto, de outra turma. Ocorre que ela não tinha autorização para isso e, obviamente, a professora não permitiu. Obviamente só para mim, talvez. Ao ouvir a negativa, a mãe deu uma surra na professora ali mesmo, na saída, na frente das crianças. Bateu e xingou à vontade, sob olhos complacentes de gente boa que nada faz quando vê o mal acontecer. É esse o desabafo da professora, contra o silêncio cúmplice.
"Você está trabalhando e apanha de uma mãe porque estava tentando proteger a criança... Os pais tudo olhando, ninguém faz nada... A escola, também não faz nada... Isso é um absurdo... Estamos abandonados... Ninguém olha por nós... O professor está largado... Não somos nada... Não valemos nada... Profissão ingrata", desabafou a professora nas stories do Facebook.
A prefeitura de Carapicuíba informou aos jornais locais que a professora recebeu apoio psicológico depois de apanhar. Mas haja psicólogo: temos uma epidemia de violência contra professores no Brasil. Segundo pesquisa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE - , o Brasil lidera o ranking de violência contra professores. Uma reportagem da Revista Nova Escola traz dados preocupantes de São Paulo:
1. Em 2018, os casos de violência contra professores aumentaram 73% com relação ao ano anterior.
2. Metade dos professores da Rede Estadual de Ensino em SP relatam já ter sofrido algum tipo de agressão na escola.
Nós todos podemos ter momentos em que duvidamos do potencial do nosso país. Há, no entanto, uma única categoria que não tem dúvida: o professor. Ninguém escolhe essa profissão por dinheiro, status ou reconhecimento, é porque acredita fazer o amanhã. Estão sendo pagos com surras e xingamentos.
Não há dúvidas sobre a gravidade da situação dos professores e a bola de neve que isso pode gerar, com menos gente ainda querendo seguir nesse sacerdócio. Mas o que pouca gente sabe - ainda bem que temos boas universidades para estudar isso - é que o ambiente violento tem consequência direta sobre os alunos, mesmo aqueles que não são vítimas diretas de violência física, sexual, verbal ou psicológica.
A Escola de Enfermagem da USP de Ribeirão Preto (EERP) idealizou a cartilha "Violência Escolar: Ações de Intervenção e Prevenção". É um caso típico de como o conhecimento liberta. O material que hoje está nas mãos dos professores do Ensino Fundamental e de qualquer cidadão é fruto de discussões acadêmicas de alto nível. O projeto "Oficina: Habilidades para o Enfrentamento da Violência Escolar" envolveu pesquisadores do Greivi (Grupo Interdisciplinar sobre Violência da EERP) e o Observatório Permanente Violência e Crime, da Universidade Fernando Pessoa na cidade do Porto, em Portugal.
O material detalha as consequências da violência na escola, dividindo os sintomas, todos objetivos, em classificações. Os afetados são todos aqueles da comunidade escolar - professores, alunos e funcionários - envolvidos direta ou indiretamente nos episódios de violência:
1. Consequências da violência escolar na saúde:
- Sintomas psicossomáticos (dores de cabeça, tontura, náuse, diarreia, enurese, sudorese, taquicardia, dores musculares, insônia ou sono excessivo, pesadelo, entre outros);
- Estresse, que pode levar a queda das defesas (resistência imunológica) e vulnerabilidade a doenças (infecções, gastrite, úlcera, bulimia, anorexia, herpes, rinite, alergias, obesidade e outras);
- Problemas na saúde mental (ansiedade, medo, raiva, irritabilidade, inquietação, cansaço, insegurança, isolamento, impotência, rejeição, inferioridade, tristeza, desgosto, angústia, baixa autoestima, depressão e pensamentos suicidas, entre outros.)
2. Consequências da violência escolar na cognição:
Dificuldades em se concentrar e aprender, levando ao desinteresse, queda do rendimento, faltas e abandono escolar.
3. Consequências da violência escolar na socialização:
Violência gera insegurança, que pode resultar em dificuldades de confiar nos outros, se expressar em público, resolver conflitos e tomar decisões, levando ao isolamento social.
Segundo a cartilha, o primeiro passo da solução - e talvez de todas as soluções na vida - é reconhecer que o problema existe. Não apenas existe como é grave, o mais grave do mundo, destruindo vidas e futuros de forma silenciosa, sem a atenção devida da sociedade, da mídia e dos políticos. Alguns podem acreditar em soluções simplistas para problemas complexos, eu não sou desse time. Temos um trabalho árduo pela frente e dele depente o futuro do país.
Não há um único país na face da Terra que tenha dado um salto na economia e bem estar sem investir de forma maciça na Educação. Aqui nós temos professor apanhando e bravateiros usando o caos para fazer marketing pessoal com ideias que não têm nenhuma base científica. Não falo aqui apenas dos políticos, é muito democrático o apetite para holofotes custeado com a desgraça alheia. Sinceramente, políticos marketeiros e oportunistas não são os únicos errados.
Nós, como pais e país, somos um pouco como aqueles que assistiram a professora apanhar injustamente na porta da escola, diante dos alunos, sem fazer nada. Temos aceitado sem questionar, há décadas, soluções simplistas e pirotécnicas para problemas complexos. Chegou a hora de parar com a permissividade para os que custeiam o próprio marketing pessoal com o futuro das nossas crianças. Estudo sério, trabalho duro e consistência podem mudar os rumos da Educação no Brasil, lacradas e mitagens em redes sociais não. Cabe a nós deixar isso bem claro.
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