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Quem gosta de armas mais que os bolsonaristas? A extrema-esquerda

Talvez quando usem o neologismo “esquerdar” os integrantes da bancada da bala e os defensores de armar a população para legítima defesa não saibam que estão esquerdando. E não é pouco. Pense em alguém que pega um princípio legítimo de Lênin – não aquela pataquada falsa do tal decálogo – e segue à risca. Esta pessoa vai defender que a população tenha armas para legítima defesa.

Opa, mas o Lênin não mandou os civis cadastrarem as armas e começou a controlá-las? Sim. E os Estados Unidos não têm o lance das armas na Constituição? Também sim. Na nossa discussão superficial, as informações parecem contraditórias.

A idolatria da superficialidade em que vivemos faz com que a discussão sobre armas tipicamente leninista, a do direito à legítima defesa, seja acolhida por bocas, corações e mentes de direitistas convictos.

Há quem seja contra o direito de ter armas e há quem seja a favor, mas não é essa a linha de corte simplista que separa a questão ideológica, a reflexão é sobre o motivo que leva a pessoa a defender ou não o direito do cidadão comum ter arma em casa. Se for teórica, é um motivo liberal. Se for legítima defesa, é comunista.

Aliás é tão esquerdista que o partido que mais comemorou o decreto de Jair Bolsonaro não foi nem o dele – que não ajuda o presidente em muita coisa e, se bobear, atrapalha – foi o PCO, Partido da Causa Operária. E o argumento do PCO para ser a favor das armas é que elas já estão nas mãos dos inimigos deles, então tem de liberar para todos os trabalhadores.

Já ouviu a história de que as armas já estão nas mãos dos bandidos, então tem de liberar para o cidadão de bem? Então, é boca torta do cachimbo esquerdista, cópia descarada dos argumentos dos comunistas. Você não se engana ao lembrar que partidos de esquerda e centro-esquerda se posicionam a favor do desarmamento, inclusive o PC do B. Estou falando de extrema-esquerda mesmo, aquela mais à esquerda do PSOL.

Não há caso que comprove a teoria da ferradura – em que os extremos são cópia do outro com sinal trocado – que a questão armamentista. Quanto mais extrema é a posição da pessoa à esquerda ou à direita, mais ela foge dos argumentos liberais e parte para duas coisas: legítima defesa e já tem arma na mão do meu inimigo.

O país armamentista por excelência são os Estados Unidos. O direito de ter posse e porte de armas, desde que cumpridos os requisitos legais não é nem discutido por lá – é capaz que exista gente a favor do desarmamento total, mas é uma minoria bem silenciosa. A grande discussão em torno das armas nos EUA se dá entre grupos a favor de regras mais rígidas de controle e a favor de mais flexibilização das regras.

Obviamente nesse embate entram as estatísticas de uso efetivo de armas de fogo e, inevitavelmente, do risco potencial na atitude de um cidadão armado que tenta se defender de um bandido. Ocorre que esse não é nem nunca foi o coração, o cerne do debate sobre ter ou não armas nos Estados Unidos. Um país formado por bases cristãs não fomenta a ideia de brincar de Deus, decidindo sobre vida ou morte.

O centro da constituição dos Estados Unidos é a liberdade. A primeira emenda é sobre a liberdade de expressão, a segunda é sobre a liberdade de possuir e portar armas de fogo. É nesse contexto, decorrente da fundação de um novo país por pessoas perseguidas em outro continente, que entra o direito abstrato de se defender contra um Estado totalitário, um direito que seria, na verdade, a garantia do Estado livre.

A teoria não-esquerdista sobre armas é ter a arma para não precisar usar.

Qualquer que seja o desdobramento tanto teórico quanto empírico do uso de armas nos Estados Unidos, a raiz é ter para não usar. A questão do direito à legítima defesa só surge relacionada à 2ª emenda em 2010, num julgamento da Suprema Corte. Conforme foram sendo criadas restrições estaduais sobre quem poderia portar as armas e quais tipos de armas podem ser compradas, cidadãos de vários Estados, desde 1934, começaram a apelar ao Judiciário para não abdicar do direito garantido na Constituição. É quando se chega nesse nível de detalhamento que é suscitado o direito à legítima defesa, não no cerne da questão.

A 2ª emenda diz, textualmente: “A well regulated Militia, being necessary to the security of a free State, the right of the people to keep and bear Arms, shall not be infringed.” Em português: “Como uma milícia bem regulamentada é necessária para assegurar um Estado livre, não se deve infringir o direito do povo possuir e portar armas”. Os pais da pátria norte-americana queriam, a todo custo, evitar que as pessoas sofressem nos Estados Unidos a mesma perseguição que eles haviam sofrido na Inglaterra.

Tenhamos em mente que o texto é de 1791, quando os norte-americanos imaginavam que o fato de a população poder estar armada seria a garantia de que os governos não teriam o monopólio da violência, necessário para oprimir o povo.

Era um mundo profundamente diferente deste século XXI, em que a ideia parecia fazer muito sentido. Não havíamos passado por guerras mundiais, as comunicações e os serviços de vigilância e espionagem eram rudimentares, ainda se utilizava arma branca em guerra. Ter uma arma de fogo e saber utilizá-la, algo que virou parte do dia-a-dia dos peregrinos que fizeram dos Estados Unidos sua pátria, significava um poder de fogo realmente significativo frente aos poderes do Estado na época.

Há uma diferença fundamental entre a cultura norte-americana e a nossa: o respeito às leis sempre foi tratado com mais seriedade e rigor por eles enquanto a transgressão e a mentira cotidiana sempre foram vistas com mais compreensão por nós. Mesmo sendo de 1791, as primeiras 10 emendas da Constituição dos Estados Unidos, conjunto chamado de “Bill of Rights”, lista de direitos, continuam sendo direitos válidos para a população.

Emenda I – Liberdade de Religião, Expressão, Imprensa, Assembléia e recorrer à Justiça

Emenda II – Direito de portar armas

Emenda III – Aquartelamento (proíbe o militar de tomar a casa de um civil em tempos de paz, jamais foi avaliada pela Suprema Corte).

Emenda IV – Busca e apreensão de pessoas, casas, documentos e qualquer tipo de propriedade só serão feitas pelo Estado a partir de causas prováveis e descrevendo o local de busca e as pessoas e objetos que serão apreendidos.

Emenda V – Devido processo legal: direito a tribunal do júri em casos criminais, direito a não se incriminar, proibição de processar mais de uma vez pelo mesmo fato.

Emenda VI – Quem é processado criminalmente tem direito a julgamento público sem atrasos desnecessários, a um advogado, a um júri imparcial e o direito de saber quem são os acusadores, quais as acusações e quais provas possuem.

Emenda VII – Separa as causas cíveis que devem ser julgadas por júri e somente pelo juiz, declarando soberanas e irrecorríveis as decisões por júri.

Emenda VIII – Sempre evocada nos recursos de pena de morte, estabelece proibição de fianças e multas excessivas, além de punições cruéis e inusuais.

Emenda IX – A enumeração pela Constituição de certos direitos não significa que o povo não tenha mais direitos, não pode ser usada como pretexto para negar direitos fora dela.

Emenda X – Estabelece o Federalismo norte-americano, estipulando que o poder emana do povo e dividindo as funções do governo Federal e dos Estados.

Esse conjunto de direitos, assinado pelo Congresso dos Estados Unidos, foi escrito por James Madison, considerado o pai da Constituição Norte-Americana. Individualmente, o direito de portar armas pode ser reduzido a uma coisa menor, a essa conversa de Rambo tupiniquim que nos tem sido enfiada goela abaixo pelos adoradores da superficialidade.

Olhando no contexto, o Bill of Rights é um conjunto de ideias atemporais, pertinentes do séc. XVIII até hoje, com foco na garantia da individualidade, do respeito ao ser humano, à dignidade humana e à propriedade, sobretudo evitando interferências indevidas e indesejáveis do Estado na vida das pessoas. É o avesso do espírito que move a justificativa armamentista de Lênin.

Para quem não quer recorrer aos originais em russo, basta dar um pulo na página do PCO, Partido da Causa Operária, que está revoltado com os co-irmãos de esquerda – teriam se rendido à burguesia – e fechadíssimo com o presidente Jair Bolsonaro numa ideia de flexibilizar mais ainda a posse e o porte de armas de fogo por todos os trabalhadores brasileiros. A foto do presidente da República, exibida de forma elogiosa, é essa abaixo, que fala mais que mil palavras.

Tenho até medo que o PCO se una aos armamentistas bolsonaristas. Eles seriam capazes de obrigar o governo a regulamentar a união civil entre uma pessoa e sua arma, como li no twitter esses dias. Não sei se era piada.

Além do PCO, a flexibilização das armas com o objetivo de auto-defesa tem o apoio de um movimento internacional chamado de “Esquerda Marxista”. Perto deles, PSOL é quase o DEM. Eles negam até a Internacional Socialista por achar que ela se rendeu à burguesia dominante.

A primeira recordação que tenho de um político falando em armar a população para que ela se defenda de bandidos como se polícia fosse foi num debate entre Mario Covas e Paulo Maluf para o governo do Estado de São Paulo, na primeira eleição do tucano. Maluf foi ridicularizado: se ele, chefe supremo das polícias, propunha passar a tarefa da defesa à população, estava confessando incompetência. Hoje os políticos não têm mais pudor de falar isso e o povo se amansou perante a incompetência.

Na última eleição houve um embate curiosíssimo sobre porte de arma: o candidato de Bolsonaro ao Senado pelo Distrito Federal, Brigadeiro Átila Maia (PRTB) e Danilo Matoso, do PCO. O Brigadeiro era contra o porte de armas pela população, o comunista acha que Bolsonaro deveria ir além do que propôs na liberação de armas.

Essa foi a declaração do Brigadeiro Átila Maia sobre o tema: “Não vejo necessidade. O Estado tem que atuar e fazer com que as pessoas possam viver em paz. Quem tem que estar armado é a polícia.” O candidato do PCO discordou: “Jair Bolsonaro não defende o armamento da população. A proposta da direita não é para a população. Eles querem armar legalmente as milícias, os jagunços, os policiais e as pessoas em torno a essa rede de poder. Porque vai ficar caro se armar. Não é pra qualquer um. (…) Então nós não apoiaríamos a proposta da direita. Nós somos a favor do armamento da população nesse contexto mais amplo de segurança pública, de dissolução das polícias e de tomada do policiamento pela própria comunidade”.

Vejam que interessante: a ideia do cidadão com poder de polícia, armado para defender-se de bandidos e quaisquer outros inimigo, é vocalizada sem pisar em ovos e sem o menor pudor pelo Partido da Causa Operária.

“Uma classe oprimida que não aspire a aprender a manejar as armas, a possuir armas, tal classe oprimida mereceria apenas ser tratada como são tratados os escravos”, escreveu Lênin em 1916 para publicação em alemão em 1917.

Também foi Lênin, no mesmo texto de 1916, que começou a chamar de choro e mimimi as ideias favoráveis ao desarmamento, tentando ridicularizar quem as vocalizava.

“Se a guerra actual provoca nos reaccionários socialistas cristãos e nos choramingas pequeno-burgueses apenas o horror e medo, apenas repugnância por qualquer emprego das armas, pelo sangue, pela morte, etc, nós devemos dizer: a sociedade capitalista foi e é sempre um horror sem fim”, diz o texto publicado originalmente pelo jornal Jugend-Internationale, depois traduzido para o russo em 1929 nas obras completas de Lênin e publicado no Brasil em 1977 pela editora Avante.

Copiam Lênin os atuais teóricos armamentistas que flexibilizam o conceito de guerra, retirando dela o papel preponderante dos Estados e as decisões dos governantes máximos. Se agora violência urbana passou a ser traduzida sem vergonha nenhuma como guerra propriamente dita, é porque Lênin abriu a porteira ao confundir o conceito de guerra com luta de classes. Em ambos os casos, o objetivo é justificar o uso de arma de fogo pelo civil.

Parece também contemporâneo o conceito de que mulheres usariam armas de fogo para se defender da violência, principalmente do estupro. A ideia é estapafúrdia porque 2/3 das vítimas têm menos de 18 anos e entre as demais a maioria é vítima de conhecidos e dentro de casa. Mas, enfim, a glorificação das mulheres armadas contra quem as ameaça também aparece nos textos de Lênin.

“As mulheres proletárias não contemplarão passivamente como a burguesia bem armada metralhará os operários mal armados ou desarmados. Elas pegarão em armas, tal como em 1871, e, das actuais nações amedrontadas -ou melhor: do actual movimento operário, desorganizado mais pelos oportunistas do que pelos governos — surgirá, indubitavelmente, mais cedo ou mais tarde, mas de modo absolutamente indubitável, uma aliança internacional de «terríveis nações» do proletariado revolucionário”, escreveu Lênin no mesmo texto de 1916: O Programa Militar da Revolução Proletária.

Em 1918, já no poder e depois de sofrer um atentado, Lênin determinou que todos os civis deveriam cadastrar suas armas. Era o primeiro passo para o desarmamento da população, dominada pelo regime comunista exatamente da forma que ele dizia ser o plano da dominação burguesa. A desculpa utilizada na época é que, como o Estado já era socialista, esse lindo ideal de paz e igualdade, não seriam mais necessárias as armas.

Se quem é a favor da vida for coerente, jamais vai discutir a questão do porte e posse de armas sob o prisma da fantasia de usá-las para acabar com a vida de outros. A discussão é filosófica e sobre liberdade.

A discussão que eu já vi ganhar corpo até entre progressistas e mesmo na esquerda moderada e na centro-esquerda é a originária dos Pais da Pátria Norte-Americana, o questionamento sobre a conveniência do monopólio da violência nas mãos do Estado, gerido a cada 4 anos por um governo diferente e cobiçado por forças políticas que têm um projeto de Poder, não de Brasil.

Nos Estados Unidos, a questão de legítima defesa só surgiu em 2010, quando Chicago restringiu a níveis quase proibitivos a posse de armas de mão em casa, a exemplo do que já havia sido feito no Distrito de Columbia. Já havia um precedente, em 2008, no caso Heller x Distrito de Columbia em que ele alegava violação da 2ª emenda porque havia perdido o direito de se defender de criminosos. Foi o argumento repetido em McDonald x Chicago & Illinois, o caso efetivamente julgado pela Suprema Corte, que decidiu a impossibilidade das proibições porque violam o direito à legítima defesa.

Esses dois casos foram os primeiros a ser analisados pela Suprema Corte dos Estados Unidos sobre o assunto desde uma decisão tomada em 1939, no caso Estados Unidos x Miller, em que se decidiu pela possibilidade do Congresso ter leis regulamentando posse e porte de armas, definindo quem são as pessoas que podem ter, em que condições e quais armas.

Aqui, a discussão chegou enviesada. E, muito francamente, a ideia de ter um revólver na mão e virar super-herói, a despeito de todas as estatísticas brasileiras da época em que as armas eram liberadas, passou a ser tentadora para uma sociedade que cultua a superficialidade e, vez ou outra, celebra a boçalidade.

Alega-se que a decisão do brasileiro em 2005 é válida para definir toda a política sobre liberdades civis e monopólio da violência em 2019. O brasileiro daquela época votou no PT ainda 3 vezes, o de hoje deu uma vitória inquestionável a Jair Bolsonaro. É lícito supor que não temos certeza sobre a opinião da população de hoje sobre armas e desarmamento.

Ainda que os argumentos leninistas vociferados pela Bancada da Bala e seus seguidores sejam muito eficientes porque manipulam o medo de quem vive em um país com mais de 60 mil assassinatos ao ano, não creio que essa seja a discussão que o Brasil merece.

Sou favorável a uma discussão profunda sobre liberdades civis – os armamentistas de internet não são muito fãs de nenhuma das elencadas no Bill of Rights – incluindo uma análise teórica e prática sobre a conveniência ou não de manter o monopólio da força nas mãos do Estado. Mas sou completamente contrária a essa doença de fomentar a fantasia de usar armas como forma de vingança.

Sei usar armas, fui treinada não só em clubes privados, já fui obrigada a portar e ter posse de arma em locais de conflito e agradeço a Deus todos os dias por não ter decidido utilizar contra outro ser humano e ter esticado o meu rol de possibilidades de fuga e defesa antes de achar necessário apertar um gatilho. Deus e a vida foram bons comigo nesses momentos. Não tenho a grandeza dos policiais e militares que, com uma arma na mão, são capazes de sacrificar a própria vida para defender a vida e a liberdade dos compatriotas. Creio que a maioria de nós está muito longe disso.

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