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A vaidade é um bicho espaçoso. Acredito que onde há vaidade não há Deus, tão grande é o espaço que ela ocupa. Fato é que, se não domada, a vaidade vai ocupando o lugar de cada fresta, de cada luz, de cada respiro até que ela é a única que sobra. Tudo tomba e desaparece diante da vaidade. Espero que não tenha sido esse o bicho que engendrou as pérolas encontradas no acordo de leniência com a Rodonorte, concessionária de rodovias do Paraná.

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É por meio dele, agora tornado público, que muita gente descobriu as razões pelas quais obras prometidas – principalmente duplicações – eram mudadas e adiadas, apesar do valor dos pedágios. No acordo mediado com o MPF pelo experiente e discreto criminalista Celso Vilardi, a Rodonorte reconheceu o pagamento de propinas para obter diversos atos administrativos.

Foram negociados nesses termos, o da propina, aditivos do contrato e também obras específicas. A duplicação do trecho Piraí-Jaguariaíva (que no documento é citada como “Jaguaríava”) foi trocada pela antecipação de duplicação do contorno de Campo Largo. A obra foi adiada ainda uma outra vez, trocada pela antecipação da duplicação de um trecho entre Ponta Grossa e Apucarana.

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Na verdade, essa duplicação estava tão enroscada que houve outra negociata, envolvendo propina, para tentar acabar com a obrigação de que fosse feita. Outras duas obras estavam no pacote das anuladas: um trecho de duplicação Apucarana-Caetano e o contorno leste de Apucarana pela BR 376.

As exigências do acordo, no início são o trivial. A empresa tem de apresentar todas as provas e indícios obtidos em investigações internas, é dado um período de 120 dias para adesão de prepostos e colaboradores, provas obtidas em investigações internas que não sejam de competência da Lava Jato serão apresentadas ao Ministério Público que tenha competência, parar de fazer os fatos narrados, ou seja, negociar com o Poder Público na base do pagamento de propina. Além disso, como medida saneadora, é proposto um programa interno de ética e transparência para a empresa a ser auditado de forma externa.

Uma compensação específica é interessante para a população do Paraná: redução de 30% no valor do pedágio. A estranheza está no outro pedágio vinculado, o de beatificar a Lava Jato.

Em todas as praças de pedágio, junto com a informação da redução, a Rodonorte será obrigada a afixar uma placa dizendo que fez acordo não com o Ministério Público Federal, instituição pública que é responsável pelo acordo, mas com a Lava Jato. Muita gente gosta da Lava Jato e são inegáveis os excelentes serviços prestados pela força-tarefa ao Brasil, mas nem por isso ela pode atropelar o princípio da impessoalidade, como fazem rotineiramente os políticos.

Não é incomum haver exigências de compra de publicidade em acordos de leniência ou Termos de Ajustamento de Conduta firmados pelo Ministério Público, em todos os ramos. Lembro vivamente das exigências em diversos dos quais participei negociando ou até elaborando o material publicitário em questão. O caso é que, nessas ocasiões, o MP geralmente aproveita a oportunidade para divulgar informações que eduquem a população a respeito do problema enfrentado no acordo.

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Cito um exemplo do qual participei. Uma instituição particular de ensino, após advertida diversas vezes pelas autoridades, não providenciou os intérpretes de Libras requeridos para inserção dos alunos surdos. Nos termos do acordo, uma das exigências do Ministério Público era a compra de espaço publicitário para a divulgação de métodos educacionais para inclusão dos surdos. Elaborei para a instituição de ensino a proposta do material, que incluía entrevistas com diversos especialistas das áreas de saúde, educação e psicologia. Os textos finais foram propostos pela instituição e apenas aprovados pelo MP, que não obrigou a instituição a dizer nada especificamente.

É por ser completamente atípico e por propor o texto final de um elogio a grupo determinado de servidores – e não à instituição – que o acordo de leniência da Rodonorte está para a Lava Jato como Carlos Bolsonaro está para o pai: na tentativa de ajudar, atrapalha.

Faço questão de transcrever os termos exatos da exigência:

apresentar pedido público de desculpas à sociedade por intermédio de placa explicativa de 8 m2 em local de ampla visibilidade nas praças de pedágío da concessionária durante o período remanescente da concessão, com o seguinte texto:

Comunicado

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// A Rodonorte dirige-se aos paranaenses para reconhecer que errou ao não adotar políticas adequadas de transparência e controle de seus negócios, pelo que pede desculpas.

// Por isso, a empresa formalizou acordo com a força tarefa da Lava Jato do Ministério Público Federal no Paraná, em que admitiu práticas de corrupção.

// A concessionária se comprometeu a reparar a sociedade paranaense pagando uma multa que será revertida na redução em 30% da tarifa de pedágio, por pelo menos 12 meses, além de outras compensações.

// A empresa entende que os fatos que geraram o acordo refletem um período que o Brasil e a Rodonorte querem deixar para trás e reforça o compromisso de aperfeiçoar seus mecanismos de controle e fiscalização.

Rodonorte Concessionária de Rodovias Integradas S.A.

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Não sou promotora pública, portanto escapa à minha limitada capacidade humana de compreensão quais os benefícios sociais seriam gerados pelo comunicado. Sou jornalista com especialização em marketing. Inclusive, como é de conhecimento de todos, trabalhei no marketing da CCR, holding controladora da Rodonorte, por quase um ano. Entre minhas funções específicas estava a garantia da padronização de sinalização viária em todas as empresas do grupo.

Além de muito ruim, o texto não fica legível em uma placa de 8m2. Ainda que alguém tenha olho de lince, é longo demais para ser lido em placa de pedágio. Servir mesmo, o texto não serve para nada. A não ser que alguém queira tirar foto na frente da tal placa.

Outro problema aqui é o da liberdade de expressão. Vá lá que se exigisse um pedido de desculpas públicas ou a informação de que o desconto de 30% no valor do pedágio é para ressarcir o povo paranaense pela tunga já recebida em esquemas de corrupção, precisa exigir que o texto seja rigorosamente aquele? Precisa falar da Lava Jato especificamente? Só Ministério Público Federal não serve?

Alguém deve ter alertado, por isso o MP refaz o texto mais adiante no contrato, no parágrafo 21. Para que ele caiba na placa, sai Ministério Público Federal e fica só Lava Jato.

A COLABORADORA deve informar aos usuários, às suas expensas, por intermédio de placa explicativa de 8 m2, em local de ampla visibilidade nas praças de pedágio e no cupom da tarifa, que o desconto tarifário é proveniente do cumprimento de obrigações pactuadas no presente acordo, por meio do seguinte texto, que deverá ser exposto enquanto vigorar o desconto:

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”O valor do pedágio foi reduzido em 3o% [ou percentual aplicado no momento] porque recursos provenientes de corrupção foram recuperados pela Operação Lava Jato e aplicados em benefício do usuário”

As exigências prosseguem. Agora entrando na área que é meu berço profissional, onde comecei a trabalhar há 22 anos, o rádio. Transcrevo as exigências:

apresentar pedido público de desculpas à sociedade por intermédio de 6 inserções diárias em horários alternados (duas pela manhã, duas pela tarde e duas à noite), em emissora de rádio com grande audiência no Estado do Paraná, diariamente ao longo de uma semana, com o seguinte texto:

Comunicado

// A Rodonorte dirige-se aos paranaenses para reconhecer que errou ao não adotar políticas adequadas de transparência e controle de seus negócios, pelo que pede desculpas.
// Por isso, a empresa formalizou acordo com a força tarefa da Lava Jato do Ministério Público Federal no Paraná, em que admitiu práticas de corrupção.
// A concessionária se comprometeu a reparar a sociedade paranaense pagando uma multa que será revertida na redução em 30% da tarifa de pedágio, por pelo menos 12 meses, além de outras compensações.
// A empresa entende que os fatos que geraram o acordo refletem um período que o Brasil e a Rodonorte querem deixar para trás e reforça o compromisso de aperfeiçoar seus mecanismos de controle e fiscalização.

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Rodonorte Concessionária de Rodovias Integradas S.A

Novamente, por não ser promotora pública, escapa à minha limitada capacidade de compreensão qual a utilidade das veiculações. Pela minha experiência de mais de década em rádio, inclusive produzindo material utilizado para Termos de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público, duas observações técnicas:

1. Pediu pouco: A Rodonorte é um grande anunciante, tem fôlego financeiro para produzir muito mais do que 6 comunicados diários ao longo de uma única semana, período absolutamente insuficiente para a propagação de qualquer ideia. Uma campanha eficiente dura, no mínimo, um mês.

2. O público não entenderá o que o texto quer dizer. A estrutura é truncada, confusa, tem duplas negativas e ordem inversa. Pode até servir para ser lido, mas não é eficiente como comunicação radiofônica. Tem estrutura parecida com textos que fazemos para recall de veículos, em que é tudo bem chato porque o foco devem ser os números de série a serem chamados.

Ah, mas a publicidade não pára por aí. Tem mais exigência que, novamente, transcrevo:

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apresentar pedido público de desculpas à sociedade por intermédio de inserção em um jornal de grande circulação estadual e de inserção no site da companhia, com o seguinte texto:

Comunicado

A Rodonorte dirige-se a seus usuários, funcionários, acionistas e aos paranaenses para reconhecer que errou ao não adotar políticas adequadas de transparência e controle de seus negócios.

Nesse sentido, a empresa comunica que formalizou um acordo com a força tarefa Lava Jato do Ministério Público Federal no Paraná, no qual admitiu que foram cometidos atos de corrupção pela concessionária e, por esse motivo, formalmente pede desculpas.

O acordo firmado com o Ministério Público Federal marca uma nova etapa para o aprofundamento de medidas de ajustes na gestão da política de governança e de transparência da concessionária, com intuito de garantir que não se repitam falhas como as cometidas no passado.

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Conforme determinam os termos do acordo. a concessionária se comprometeu a adotar medida para a reparação da sociedade paranaense:

O pagamento em favor dos usuários de 30% da tarifa de pedágio por pelo menos 12 meses, com alcance de todas as praças do trecho administrado pela concessionária. Este desconto será em benefício de todos os usuários da Rodonorte.

Nesse sentido, a empresa reafirma que os fatos que ensejam o acordo firmado refletem um período que o Brasil e a Rodonorte querem deixar definitivamente para trás. Por isso, apresenta este pedido de desculpas à população do Paraná e reforça o seu firme compromisso de aperfeiçoar os mecanismos de controle e fiscalização.

Rodonorte – Concessionária de Rodovias Integradas S.A

Mais uma vez, não tenho a inteligência de um Procurador da República para saber que grande benefício à sociedade será trazido por esses comunicados no jornal e no site, mas faço algumas observações técnicas de comunicação:

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1. Não é estipulado o tamanho do anúncio nem em que tipo de seção do jornal. Ou seja, pelo que foi acordado, pode ser inserido em letras minúsculas no meio de um classificado.

2. Não é estipulado em que área do site deve ser posto o comunicado, por quanto tempo nem com que destaque. Ou seja, pelo acordado, pode ser uma página escondida à qual não se tem acesso por cliques em abas, mas apenas com o link específico.

Esmiucei de forma tão detalhada o que é da minha área técnica apenas para afirmar o seguinte: não há nenhuma preocupação técnica para que determinada mensagem seja passada à população, apenas se aproveita uma oportunidade para fixar a marca Lava Jato, em detrimento da marca Ministério Público Federal.

O mais importante do acordo não consta de nenhuma publicidade, é a quantia vultosa que a Rodonorte topou devolver aos cofres públicos. São R$ 715 milhões por reparação de danos e outros R$ 35 milhões como multa por Improbidade Administrativa. Na reparação de danos, metade do valor é para financiar a redução do preço do pedágio e a outra para realização das obras que foram suspensas nos acordos selados com pagamento de propina.

Outro ponto importantíssimo e inteligente é a proibição de distribuição de lucros pela empresa e de pagamento de bônus acima do valor dos 5 anos anteriores até que se assegure, via relatório contábil independente, que o valor necessário para terminar as obras de interesse do povo do Paraná. Além disso, esses pagamentos e o dinheiro utilizado como propina não podem servir de justificativa para pedido de equilíbrio econômico-financeiro da concessão para a Rodonorte.

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Aliás, nada disso teve tanto destaque assim porque, como disse no início do texto, vaidade é bicho espaçoso, ficou todo mundo se perguntando por que a Lava Jato precisa se promover dessa forma.

O imbroglio do acordo publicitário se soma a outra confusão completamente desnecessária que a força-tarefa arrumou envolvendo a administração de um fundo bilionário advindo do acordo da Petrobrás nos Estados Unidos, que passou a mobilizar a atenção e os corações dos procuradores. Já não é mais a caça a corruptos a única coisa que ocupa o tempo da Lava Jato.

Não sei quantos sábios governantes já disseram que só conhecemos verdadeiramente as pessoas quando damos poder a elas. O poder corrompe e não falo aqui de corrupção, falo de corromper a alma, de levar um ser humano comum a acreditar que é melhor que os outros, de levar servidores públicos a fecharem acordos penais em que exigem ser reconhecidos publicamente por não terem feito nada além da própria obrigação.

A barra moral da nossa sociedade anda tão baixa que, se o servidor público não é corrupto ou, melhor ainda, se ele bota corrupto atrás das grades, acabamos fechando os olhos para todo e qualquer desvio de conduta que ele possa vir a ter. Desde o início, o sonho da classe política brasileira era acabar com a Lava Jato. Tentaram de tudo, talvez sem imaginar que a maior ameaça contra a força-tarefa fosse ela mesma, sucumbindo ao monstro da vaidade.

 

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