– Vocês me acham um homem mau?
– Nãããããão!!!
– Então vocês me acham um homem bom?
– Siiiiiiiimmm!!!!
– Vocês ainda me querem como mentor de todos ou preferem que eu me afaste de seus corações?
– Queremos Tim Tones! Queremos Tim Tones! Queremos Tim Tones!
– No entanto, devem ter lido o que os jornais publicaram a respeito deste humilde mentor de todos vocês: acusações imerecidas, falsidades descomunais e ofensas ignominiosas!
– (vaias)
– Além de dizerem que eu me aproveito de vocês, a quem chamam de incautos, me acusam de racista. Ato contumaz, eu perdoo, já que perdoar é dever de todos nós. Ou não é?
– Éééééééé!!!!
– Mas a acusação de racismo causou mágoa profunda. Somos todos iguais ou não somos?
– Somos!!!
– Somos iguais em tudo, independente de status, de crença, naturalidade, nacionalidade ou cor da pele.
– (Apupos)
– Assim eu vivo, assim eu provo! Meus queridos irmãos, esta criança é branca?
– Nããããão!!!
– Então esta criança é negra?
– Éééééééé
– Para acabar com as acusações malévolas que me são feitas, acusações de racismo, eu, com a maior piedade, o maior fervor e toda naturalidade acaricio esta criança negra como se branca ela fora.
Hoje, em 2019, o texto parece de discurso político. Com uma ou outra correção na forma, não parece absurdo que os nossos políticos usem artifícios como esse para “demonstrar verdades”, com apoio fervoroso de seus idólatras. Curioso é que, no Brasil de 40 anos atrás, jamais alguém pensaria que se trata de política, soaria absurdo. O texto não é meu, é de um gênio absoluto da comédia de costumes, Chico Anysio. O personagem Tim Tones, pastor picareta cujo nome era escrito com dois revólveres representando as letras T, virou a personificação do fenômeno de seita política iniciado pelo lulopetismo e continuado pelo bolsonarismo.
Temos efetivamente ouvido falar, neste século XIX, cada vez mais no termo “seita” durante os debates políticos e não se trata de um fenômeno brasileiro, mas de uma paixão desmedida e de uma agressividade sem freios morais para debater temas que podem ser objetivos ou opiniões pessoais, que são sempre únicas. Estamos em uma época em que se tenta subverter os princípios da Criação, em que todos os seres são únicos e convivem em fraternidade, para tentar encaixá-los em moldes fixos de pensamento único, com reações raivosas contra quem se recuse.
Importante deixar bem claro que não falo de ideologia, mas de uma onda que está matando o debate político não apenas no Brasil e tem representantes igualmente hidrofóbicos em todas as matizes ideológicas. Obviamente, sempre tem mais efeitos perversos a que ocupa o poder.
Resolvi voltar à lógica de que seita é uma espécie de corruptela de religião, para fazer uma relação do que acontece com os grupos políticos. Se as seitas deturpam os livros sagrados para criar códigos próprios, as seitas políticas deturpam princípios, ideologias e práticas de debate para impor seus códigos próprios. No esquete de Chico Anísio fica claríssima a semelhança de discurso, então resolvi fazer um exercício para identificar pontos em comum entre os dois tipos de seita.
Como os grupos religiosos se dedicam há muito tempo ao estudo dessas diferenças, resolvi recorrer ao meu, o cristão protestante, simplesmente porque é o que eu conheço melhor, o que me possibilita uma análise mais precisa. A base teológica da Reforma Protestante são os 5 solas, 5 frases em latim que resumem a prática cristã. Foram escritas também como uma espécie de declaração contra a distância entre os Evangelhos e a prática católica de 500 anos atrás.
Os 5 solas são:
Sola fide (somente a fé)
Sola scriptura (somente a Escritura)
Solus Christus (somente Cristo)
Sola gratia (somente a graça)
Soli Deo gloria (glória somente a Deus)
Há um método de diferenciação entre religião e seita baseado nos 5 solas e nas 4 operações matemáticas: Adição, Subtração, Multiplicação e Divisão. É possível aplicar o mesmo para diferenciar militância e ideologia de seitas políticas.
Adição
Versão religiosa: Adiciona-se algo ao livro sagrado e essas regras passam a ter a mesma força dele. Contraria-se o princípio de Sola scriptura, em que nada além do que está no livro sagrado pode ser tido como preceito religioso.
Versão política: Adiciona-se algo além das ideologias e crenças políticas para que se crie uma espécie de “código de costumes” do grupo, quase sempre num pacote fechado, envolvendo comportamentos e discursos facilmente identificáveis, mas que nada têm a ver com ideologia política.
Exemplos:
Grupo se denomina de esquerda porque impõe o combo: liberação do aborto, falar em direitos humanos, apoio a parto em casa, questionamento da depilação feminina, garantia de direitos dos anti-vacinas enxergar machismo até em barraca de cachorro-quente, exacerbar situações para que pareçam racistas até quando não são, crença no monopólio da virtude.
Grupo se denomina de direita porque impõe o combo: terra é plana, porte de arma liberado até no berçário, bandido nem é gente, masturbação mata neurônios, fumar não faz mal, existe meritocracia ainda que hereditária, é necessário aniquilar quem pensa diferente, crença no monopólio da virtude.
Subtração
Versão religiosa: subtrai-se algo de Jesus, ele passa a ser uma pessoa bondosa, um profeta, um anjo, um Deus, aceito e até adorado, mas sempre inserido no contexto de outro poder maior que é o central na vida dos seguidores. Contraria o princípio Solus Christus, em que a Bíblia diz que Ele é Deus e nossa única salvação.
Versão política: subtrai-se a importância da dimensão religiosa ou espiritual da vida dos seguidores, que passam a ser mobilizados por uma crença sem questionamento em figuras humanas, ainda que se declarem religiosos. Subtrai-se dos princípios religiosos e morais toda a relevância e esse vácuo é imediatamente ocupado por todo discurso e ordem de um líder humano, que passa a ser considerado acima de críticas. Recentemente, o fenômeno tem rebanhos no lulopetismo, no bolsonarismo e no sub-grupo bolsonarismo olavista.
Multiplicação
Versão religiosa: multiplicam-se as exigências para que a alma da pessoa seja salva, pregando-se que apenas crer em Jesus não é suficiente para a redenção. Contraria o princípio Sola gratia, em que a pessoa é salva única e exclusivamente pela Graça, que é um dom de Deus e independe de obras que vêm de nós. A salvação não é humana, mas divina. São multiplicados os atos, costumes e discursos humanos que, em tese, substituiriam a Graça divina.
Versão política: multiplicam-se as exigências para que alguém tenha o direito de usufruir da dignidade humana e dos princípios fundamentais garantidos nas leis. Contraria o princípio consagrado na legalidade e na política de que a dignidade é um valor intrínseco ao ser humano e de que a lei é igual para todos. Dignidade e direitos fundamentais, algo que é garantido a toda humanidade, passa a ser vinculado não à existência, mas a um conjunto de atitudes vistas como imprescindíveis. Respeito, privacidade, liberdade, liberdade de expressão, segurança e, em alguns casos, a própria vida, depende de compactuar com algum rol de regras e opiniões ou seguir cegamente determinado líder político.
Divisão
Versão religiosa: divide-se o mérito da Salvação de Deus entre Jesus e uma organização religiosa. Acredita-se que não há salvação fora daquele determinado grupo religioso e que desobedecer as regras e costumes dele equivale a desobedecer a Deus. Contraria 2 solas. Primeiramente, Sola fide, impondo requisitos além da fé que possibilitariam uma condução à salvação e, em alguns casos, podem ser até uma espécie de alternativa a ela. Também, Soli Deo gloria porque a Glória é somente de Deus e não de um determinado grupo que, por atos e costumes, resolve se proclamar mais virtuoso que outro e com poderes divinos.
Versão política: divide-se o acesso a participar do debate público entre a existência humana, à qual são inerentes todos os direitos políticos, e a obediência cega a determinado grupo, que muito comumente estabelece signos tanto para indicar quem pertence a ele quanto para discriminar quem está fora e, portanto, considera-se sem direito ao debate público. Pessoas que tenham determinado tipo de convicção ou pertençam a uma ideologia política com a qual o grupo não concorda não teriam, em tese, o direito de se expressar e, por isso, não há limite moral ou de agressividade para tentar calar ou frear esses indivíduos.
Resumo da Ópera
Pegue todos os preceitos de Liberdade e Direitos e coloque no lugar do livro sagrado e dos 5 solas. Aplique então as 4 operações matemáticas: adição, subtração, multiplicação e divisão. Quando elas são usadas para se contrariar princípios básicos como “a lei é igual para todos”, “a liberdade termina quando começa a liberdade alheia”, “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei” e inúmeros outros típicos da civilização, não falamos mais de militância política, falamos de seita política.
A dica para avaliar comportamentos e grupos dentro do conceito de seita política é sempre recorrer às 4 operações matemáticas. Para o exercício das liberdades políticas e de expressão, além do usufruto dos direitos e liberdades fundamentais, determinado grupo exige ou admite:
– Adição de regras além daquelas que já constam do diploma legal?
– Subtração dos princípios e valores individuais, geralmente com substituição pelos de uma figura humana ou grupo?
– Multiplicação das exigências, incluindo fatores como aderir a determinado rol de regras ou ordens de um líder?
– Divisão do que origina a legitimidade entre a existência humana – que seria o único fator – e as condições impostas por um grupo ou líder.
Devido à escalada de agressividade nos discursos e, creio eu, à falta de atenção dada à questão da saúde mental, atividade política tem saído do âmbito que é devido – o da liberdade e da cidadania – para ocupar na vida das pessoas o lugar que é da religiosidade, da espiritualidade, das paixões e do relacionamento social. Quando a defesa de posicionamentos ideológicos é tratada como se fosse a defesa apaixonada de uma religião, temos uma seita, não temos mais política. Bom lembrar que, fora da política, só existe a barbárie.