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As conversas nada republicanas entre procuradores e juiz da Lava Jato não soterram os crimes cometidos pelo PT, apenas encerram a narrativa de heroísmo que apimentava todos os casos. Obviamente quem despreza as instituições e a democracia tentará sair em defesa do indefensável, mas a realidade é só uma: a lei tem de valer para todos, até para os ungidos.

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O Brasil viveu, nos últimos tempos, uma relação tempestuosa com o Judiciário e o Ministério Público. Por um lado, os integrantes dessas instituições esfregam diariamente na cara do país o quanto se sentem superiores aos demais. Por outro, assim que um grupo começou a incomodar corruptos, a sociedade confirma que eles são mesmo superiores aos demais seres humanos e eles desistem de seguir regras.

O processo de seleção e os salários iniciais das carreiras jurídicas no Brasil são feitos sob medida para o sistema falir.

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Gente sem nenhuma experiência de vida é selecionada para ter o poder de prender, soltar, congelar contas bancárias e muito mais. Qual o critério? Capacidade de memorização. O salário inicial equivale a mais de um ano do salário médio das famílias brasileiras. Uma vez vitalícios, os integrantes dessa carreira quase não obedecem regras. Ainda que façam as piores coisas, o máximo que lhes ocorre é o afastamento com pagamento integral. Qual a chance de um sistema desses fazer justiça?

Não vou nem comentar a falta de noção que leva um juiz, responsável pelos maiores casos de corrupção do Brasil, a achar que está tudo bem entrar num grupo de Telegram de procuradores, sabendo das consequências nefastas que isso pode ter. Vou falar de outros casos, com os quais convivemos abertamente enquanto as mensagens eram trocadas em sigilo.

Em janeiro de 2013, 242 pessoas foram queimadas vivas dentro da Boate Kiss, em Santa Maria. Depois de um acidente pirotécnico, os responsáveis pelo estabelecimento resolveram trancar todo mundo num incêndio até que as comandas fossem pagas. Apesar das dezenas de cadáveres, os responsáveis continuavam soltos e os pais das vítimas ficaram revoltadíssimos.

O que fez o Ministério Público? Processou os pais que reclamavam da morosidade da punição. Aliás, esses pais foram a julgamento antes dos responsáveis pelo incêndio. O crime deles foi espalhar pela cidade cartazes com charges de protesto contra o promotor responsável pelo caso e o prefeito da cidade.

O que leva um servidor público a achar que tem o direito de processar pais que acabaram de perder os filhos numa tragédia porque reclamam da sabida lentidão do Judiciário? É o sistema.

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A ação penal foi cancelada em 2018, 5 anos depois de sua abertura, quando o promotor disse já não ter mais interesse nela. Quem reparou os danos psicológicos e o sofrimento adicional impingido aos pais das vítimas? Quem os ressarciu pelo esforço burocrático de se defender de uma ação penal em luto? Ninguém. Nada alterou a rotina do promotor.

Outro caso que me chocou demais foi o do menino Ezra, de 7 anos, encontrado esquartejado dentro do freezer da família no bairro de Santo Amaro, aqui em São Paulo. No ano anterior, ele havia sido afastado do convívio familiar devido a uma série de espancamentos que sofria.

Contrariando os pareceres dos especialistas e do Conselho Tutelar, o juiz decidiu que o menino voltaria ao convívio familiar, com a supervisão do Centro de Referência de Assistência Social. Mas pode determinar isso mesmo que todos os laudos sejam contrários? Pode. E, no caso, ficaram calados tanto o Ministério Público quando a Defensoria Pública - a última havia conseguido há alguns meses duplicar os salários para equiparar aos das demais carreiras jurídicas.

Esse menino acabou esquartejado dentro de um freezer. Os pais, estrangeiros, fugiram para o país de origem antes do encontro do corpo. Só não foi enterrado como indigente porque um advogado, sensibilizado com o caso, resolveu pagar o enterro do próprio bolso.

Na época, como jornalista, perguntei formalmente ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo quais as providências tomadas com relação ao juiz. Nenhuma. Foi considerado um erro comum.

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Lembram da juíza do Pará que colocou uma menina de 15 anos, acusada de furto de celular, numa cela com dezenas de homens que a estupravam diariamente? Depois que o escândalo assentou, ela chegou a ser cotada para ser a maior autoridade na Justiça da Infância e Juventude do Estado. Só desistiram por gritaria da imprensa e da sociedade.

Ia faltar espaço na internet se a gente resolvesse enumerar todos os casos bárbaros envolvendo Excelências do Judiciário e do Ministério Público que acabaram em absolutamente nada. Após o vitaliciamento, tudo é permitido às Excelências. Então, nesse clima, por que mesmo alguém iria respeitar algo tão sutil quanto a independência entre Procuradoria e Judiciário? Se, na prática, não se pune o muito, por que se haverá de punir o pouco?

Os integrantes da Força Tarefa da Lava Jato decididamente têm inúmeros méritos, mas não deixam de usufruir de um sistema torpe no qual estão inseridos, a República das Excelências.

Receber auxílio-moradia mesmo tendo casa na mesma cidade é uma prática das carreiras jurídicas que chocou o Brasil, sobretudo porque o tal "auxílio" é de quase duas vezes o valor do salário médio das famílias brasileiras. Os integrantes da Lava Jato não abriram mão do benefício, como fizeram muitos juízes e promotores. E isso não escandalizou muito porque, afinal, é direito deles, as Excelências.

O poder corrompe. Aqui não falo de corrupção propriamente dita, de pegar dinheiro. São ambições diferentes a sede financeira e a sede de poder. Falo de corrupção da alma, da moral, de se deixar consumir pela vaidade a ponto de começar a pairar por sobre as regras que estão ali para serem obedecidas.

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Apenas porque, na comparação, esses servidores absolutamente inexperientes conseguiam, por meio da Lava Jato, resultados melhores que os obtidos anteriormente contra corruptos, foram alçados à condição de heróis. E não há alma humana que resista à bajulação e ausência de limites. Somos humanos, sucumbimos. Era uma questão de tempo o aparecimento dos problemas.

Pode parecer duro demais falar sobre inexperiência, mas escolho aqui uma frivolidade, postada por outro procurador paranaense no Twitter, para ilustrar o encontro da falta de experiência com a falta de limites. "Um cachorro morto por um vigilante de mercado: 1 mês de comoção televisiva, boicote coletivo, manifestações de repúdio. Um menino de 8 anos assassinado pela mãe e companheira, um ano depois de ela ter mutilado seu pênis: nada na mídia, sem manifestações de ativistas.Onde erramos?", questiona o Procurador da República numa rede à qual todos têm acesso.

O que exatamente busca uma autoridade ao dizer publicamente essa narrativa que tem a profundidade de um pires? Primeiramente, é uma mentira flagrante e pública, que compromete a credibilidade da instituição que ele representa. Se não saiu "nada na mídia", como alega o ilustre servidor público, de que forma ele ficou sabendo? Contaram no Telegram? Qual o propósito de uma autoridade utilizar em suas redes a falsa simetria que tem sido explorada politicamente por personagens que pouco se importam em tripudiar sobre um cadáver de criança?

Quando morei em Angola, era advertida constantemente pelos meus colegas: "brasileiro gosta mesmo é de obedecer". No começo, fiquei bem incomodada, confesso. Mas, infelizmente, é verdade. Por que cargas d'água resolvemos alçar à condição de heróis justamente a casta mais mimada da República das Excelências? Porque gostamos da figura da autoridade que tudo pode.

Poder precisa ter limites ou se converte em tirania.

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Agora, obviamente, vamos passar um tempão discutindo a vida dos hackers, Lula solto, Moro sai ou fica, o que fazer com Deltan e etc. Daqui a alguns anos, já teremos novos heróis que têm o grande histórico de não fazer nada mais que sua obrigação apenas porque os demais nem isso fazem. Daí, esses heróis se sentirão acima do bem e do mal e passarão a cruzar linhas perigosas. Então teremos um novo escândalo.

O problema não é essa ou aquela personalidade, é o clima de falta de limites que a nossa sociedade gera. Enquanto nós não mudarmos, essa ópera que já está cansando o país vai se repetir indefinidamente. Não precisamos de heróis, precisamos de instituições sólidas. Pode não ser tão emocionante mas, garanto, de tédio o Brasil não morre.