Marinheiro se conhece na tempestade. Durante a calmaria ou contando os próprios feitos, todo marinheiro é bom. No debate nacional gerado pelo enterro de Vavá, irmão mais velho do presidente Lula, o barco chacoalhou e dividiu a tripulação por estatura moral. Alguns, com orgulho, se puseram abaixo do nível do mar.
Sou e sempre fui contra a interferência na família, incluindo aí a maledicência e julgamentos sociais. Não se trata apenas de fé religiosa ou de defender que sejam garantidos a nós todos os Direitos Humanos e Fundamentais, mas de objetividade: é impossível alguém que não é da família saber o que se passa nela, exceção feita aos fatos que descambam para a crônica policial.
Há quem estivesse a favor de permitir que o ex-presidente Lula deixasse o presídio em Curitiba para ir ao enterro do irmão, direito que está na lei e é concedido a 175 mil presos ao ano, de acordo com dados o InfoPen em 2015. Há quem fosse contra, quer seja pelo gasto público que o aparato policial demandaria ou pela interferência na ordem pública que a soltura poderia causar. Ambas são posições honradas.
No meio desse debate, surge uma espécie de “Bancada do Programa de Fofoca”, com uma maledicência aparentemente incontrolável e reveladora de um nanismo ético e moral: Lula não foi ao velório dos irmãos quando estava solto, por que vai agora que está preso?
Sinceramente, não consegui detectar de onde isso se originou e, para falar a verdade, prefiro nem saber. Mas fato é que isso foi considerado publicamente como argumento sério pelo filho do presidente da República, num tweet que gerou reações que são a mais pura definição de esgoto moral. Carlos Bolsonaro argumenta que Lula não foi ao velório de dois irmãos em 2004 e 2005 e também não foi ao do pai.
Uma das qualidades inegáveis do presidente Jair Bolsonaro é a firmeza em apoiar os filhos e a valorização dos membros da própria família. Teve a honra de não abandonar nem esconder um filho fora do casamento, como fazem tantos homens públicos que se dizem honrados, e faz questão de ser pai para todos os filhos, de todos os casamentos. Nem todos os homens são assim corretos e o pai de Lula não foi.
Na entrevista dada a Denise Paraná para o livro “Filho do Brasil”, Lula disse: “Eu tenho mágoa do meu pai porque acho que ele era muito ignorante, era um poço de ignorância. (…) Meu pai morreu em 1978 como indigente.” Aí está a primeira razão para ele não ter ido ao enterro, a de ordem prática.
O uso da palavra “ignorante” talvez não dê a dimensão do que foi este pai. Ele largou a mãe de Lula, dona Lindu, com 7 filhos e grávida do oitavo no sertão de Pernambuco para fugir com uma prima dela para São Paulo. A família não sabia disso, tinha a ilusão de que ele estava tentando uma vida melhor para todos eles.
O caso foi descoberto quando o mais velho, Jaime, foi para São Paulo ganhar a vida e lá encontrou o pai vivendo vida de recém-casado com a prima. Insistiu, sem falar os motivos, para que a mãe se juntasse a eles. Ela atendeu ao pedido do filho e fez a viagem com os outros 7, num pau-de-arara, história que você já deve ter ouvido um milhão de vezes porque é uma das mais míticas e repetidas do cenário político brasileiro.
Ocorre que, ao chegar em São Paulo, a mãe de Lula descobriu que o pai dele tinha dois outros filhos, com 6 e 7 anos de idade. Ele mandou dona Lindu para a casa de um compadre, arrumou uma nova casa para a mulher atual e passou a agir como chefe de família das duas famílias. Mas tinha uma pitada de crueldade aí: a segunda família era tratada melhor.
Lula jamais disse isso com todas as letras. Na entrevista para o livro, diz: “Minha mãe se queixava muito de que ele tratava a outra mulher melhor do que ela, que as frutas que iam para a outra eram as melhores, que a despesa para a casa era maior. Minha mãe se queixava muito disso. Eu não tenho muita recordação disso para saber se era verdade”, ponderou.
Mas há outros relatos que, sem fazer juízo de valor, são determinantes para provar o tipo de ligação afetiva do ex-presidente com o pai:
“Uma coisa que me marcou muito no meu pai é que um dia – em 1952, a minha irmã tinha uns 3 anos – eu via meu pai comendo pão e a minha irmã pedindo um pedacinho. Meu pai pegava os pedacinhos de pão e ia jogando para os cachorros. Ele não dava para ela. Eu não tenho certeza se ele estava ouvindo ela pedir, mas eu sei que isso me marcou muito.”
“Meu pai chegou em casa de noite, com a maior ignorância do mundo, pegou a mangueira, pegou o Frei Chico – o coitadinho estava trocado para ir para a escola – deu-lhe uma surra!… Acho que ele tinha uns 10 ou 11 anos. O coitado urinava nas calças de tanto que apanhava. E meu pai, quando terminou de bater nele, veio bater em mim (que era o caçula). Quando ele veio bater em mim, minha mãe não deixou. Aí ele deu uma mangueirada na cabeça dela e isso foi o começo do processo de separação da minha mãe e do meu pai.”
“Meu pai não comia o pão que nós comíamos. Se para a gente ele comprava bengala de pão – naquele tempo a gente usava falar filão de pão -, para ele, ele comprava pão-doce, aquelas broinhas, aquelas coisas mais bonitas. Ele levantava mais cedo do que a gente, tomava café, comia o pedaço de pão dele. Depois pegava o restante que sobrava, botava numa lata em cima do armário e ninguém podia mexer. Só quando ele voltava, ele abria para comer. Ele não dava para a gente aquilo, aquilo era uma coisa só dele. Coisa que hoje um pai normal, um ser humano normal, fica sem comer para dar para o filho. O meu pai comia.”
“Eu fico com pena dos irmãos mais velhos, porque eu era criança e criança ficava dentro de casa, mesmo. Tinha irmão mais velho que trabalhava de carvoeiro, o outro trabalhava no estaleiro, o outro irmão, o Vavá (que acaba de falecer) trabalhava num bar. E eles não tinham o direito de sair sábado ou domingo, não tinha. Ai de qualquer um deles se meu pai chegasse em casa de noite e tivesse alguém para fora do portão. Ele não admitia que tivesse alguém para fora do portão.”
“Minha irmã tinha namorado, que é o marido dela hoje, e ela pulava a janela para namorar. Meu pai não deixava, então ela pulava a janela para namorar. E um dia meu pai soube e deu um soco na testa dela que afundou a testa.”
“Esses dias eu encontrei com a outra mulher do meu pai. Coitadinha, ela está surda. Está tão carinhosa comigo. Ela era boa gente, não era má pessoa. A história da água que eu e o Frei Chico tínhamos que carregar para ela era a seguinte. Tinha um poço de água longe da casa dela. A gente tinha que atravessar praticamente todo o Vicente de Carvalho carregando água. Tinha um barril que eu não sei se era de 100 ou 200 litros, com um sistema que nós íamos rodando ele no chão. A gente amarrava uma corda na barriga e ia puxando o barril até ele chegar lá. Os filhos que eram só dela não faziam isso, mas meu pai obrigava a gente a fazer.”
Essas histórias são iguais a tantas outras que você, que paga boleto e é responsável por algum ser humano além de si, já ouviu em diversas famílias. Os sentimentos gerados por ela podem ser devastadores ou superados um dia, mas não se reconstrói afeto inexistente. A história mais marcante, no entanto, é a que mostra o tratamento cruel e mesquinho, a do sorvete.
“Ele chegou, deu sorvete para o meu meio-irmão mais velho, chamado Beto, que é filho dele com a outra muher – que é pastor hoje, é um cara legal -, deu sorvete para o Rubens, que é outro meio-irmão, deu mais uns sorvetes para algumas pessoas e aí ele foi dar um para mim. Esticou a mão e disse o seguinte: ‘Olha, você não sabe chupar, eu não vou te dar sorvete não’. “ – conta Lula sobre o episódio ocorrido quando tinha entre 8 e 9 anos de idade.
Alguns podem alegar que esse histórico não é justificativa para não ir ao enterro do pai, que há de se honrar pai e mãe. Eu discordo veementemente. Lula não: ele tentou ir ao enterro do pai, mas a família só soube da morte 12 dias depois, após o enterro como indigente.
Depois que se separou da 2ª esposa, prima da mãe de Lula, que não aguentava mais as surras constantes nela e nos filhos, o pai de Lula ficou desequilibrado mentalmente e dedicou seus últimos dias a gastar a aposentadoria com farra e mulheres. Lula chegou a visitar o pai na casa de uma comadre, que os havia acolhido quando chegaram de Pernambuco. O pai se trancava no banheiro e achava que estava sendo perseguido.
Mesmo assim, quando recebia a aposentadoria, levava mulheres para casa e depois ficava só e isolado quando o dinheiro acabava. Perdeu o contato com toda a família. “Eu soube da morte do meu pai assim: recebi a notícia de que a Scania tinha decretado a greve de 1978 às 8 horas da manhã, às 9 horas da manhã eu recebi a notícia de que meu pai tinha morrido. Eu entrei em contato com os meus irmãos e disse: ‘Nosso pai morreu, vamos para lá todo mundo’. Como os meus irmãos foram na frente, descobriram logo que meu pai tinha morrido há 12 dias atrás, não naquele dia. Eu tinha recebido a carta da mulher dele com muito atraso.”, conta Lula na entrevista dada para o livro “Filho do Brasil”.
Além dos 8 filhos com dona Lindu, mãe de Lula e dos outros 2 com a prima dela, o pai de Lula também teve diversos outros – calcula-se que o total seja em torno de 20 – assumidos e não. Com esses, o ex-presidente não tinha contato. Não faz sentido que fosse nem a enterro nem a casamento.
Toda essa situação familiar explicada, há que se fazer a ressalva: ainda que nada disso tivesse acontecido ou fosse público, quem julga a família alheia no nível “não foi ao enterro de um irmão mas vai ao de outro” está aproveitando do direito democrático e universal de ser imbecil. Não é proibido fazer esse tipo de questionamento, mas é o tipo de fofoca que fala mais sobre quem espalha do que sobre os retratados na narrativa.
É algo muito próximo do caso em que o fotógrafo Lula Marques flagrou uma conversa de whatsapp entre Jair Bolsonaro e um dos filhos do primeiro casamento, que falava do irmão nascido fora do casamento com palavras pouco elogiosas. Havia ali, na mesma conversa, temas de interesse público – esse não era um deles. Nenhuma pessoa decente ou com um mínimo de experiência de vida se meteria a julgar a relação entre dois irmãos de casamentos diferentes. A única observação que podemos fazer sem errar é o mérito do pai em manter a convivência com os filhos e entre eles.
O mais intrigante nesse caso é que há inúmeros argumentos bons utilizados por quem acreditava que Lula não deveria ser liberado para o enterro do irmão. Por que então utilizar o único argumento que revela falta de ética e moral? A torpeza da alma é incontrolável.
Há pessoas sérias que, depois de verem essa discussão já embalada – inclusive artificialmente – nas redes sociais, caíram em tentação e reproduziram o único argumento imoral em uma discussão necessária. Creio que esses tomarão mais cuidado de agora em diante. Há, cada vez mais, perfis utilizados para repercutir artificialmente informações e dar, pela quantidade de citações, importância a assuntos e pessoas insignificantes.
A discussão em si sobre a possibilidade de liberar presos da cadeia para funerais de parentes próximos ou visitas a doentes terminais vai chegar à sociedade. Já é algo garantido pelo art. 120 da Lei de Execuções Penais e, segundo o InfoPen, aplicado a milhares de detentos todos os anos. Ocorre que somente há alguns anos o Brasil começou a colocar atrás das grades pessoas poderosas. Antes da Lava Jato, mal passava pela nossa cabeça que a nata da política e do empresariado um dia pudesse correr o risco de ser presa.
Se a liberação de criminosos desconhecidos, com escolta policial, por algumas horas para esse tipo de finalidade passou despercebida da sociedade por 35 anos, evidentemente não será assim com os famosos. É óbvio que a balança que equilibra a possibilidade de direito deles com os interesses da sociedade funciona diferente. Em caso de poderosos, obviamente há mais risco de não-retorno e de criação de transtorno à ordem pública, inclusive episódios de violência.
Nunca antes na história desse país gente poderosa ficou presa tempo suficiente para que surgisse a situação de saída para funeral. Qual será o parâmetro a partir de agora? Precisamos definir.
O caso de Lula foi uma batata quente que um foi jogando no colo do outro até que caiu nas mãos da juíza Carolina Lebbos e ela tomou a única decisão que podia: vetou. Quem toparia esse nível de risco? Além da transformação óbvia do velório em comício, o showmissa em frente à CUT antes da prisão atiça a imaginação sobre o nível de violência e afronta à Justiça que pode vir de uma manifestação popular. Não é um preso comum, mas um preso que, por meio de mobilização política, pode causar transtornos à ordem pública apesar da atuação das autoridades.
A decisão do ministro Dias Toffoli foi uma bala de prata para evitar a narrativa da vitimização e, ao mesmo tempo, salvar a honra das autoridades constituídas. Se toma a prudente decisão de não liberar o preso, a Justiça admite que ele tem mais poder que o Estado brasileiro. Não se trata de preso que por si só oferece risco – como um homicida em série ou um chefe de milícia -, não é alguém que está atrás das grades por violência física ou crime de sangue: o risco que ele oferece é diretamente proporcional à sua influência política.
Dias Toffoli escolheu o caminho do meio. Permitiu que o ex-presidente Lula saísse da cadeia, mas não para o cemitério. Deveria ser transportado até a sede das Forças Armadas mais próxima do local do velório. Se a família quisesse, poderia inclusive trasladar o corpo até lá para que fosse feita a despedida. Foram proibidos celulares, registros em áudio, foto ou vídeo do evento e a entrada da imprensa. Ou seja, poderia sair, mas não para um novo showmício nem para conceder a entrevista que foi negada pela juíza de execuções penais.
O que realmente aconteceu ali aposto que jamais saberemos. A versão dos ligados a Lula é que a decisão de Dias Toffoli chegou depois do enterro. Seria possível ter esticado o velório até as 17h. Pessoas experientes, que já viveram casos em que familiares têm de viajar para fazer sua despedida, sabem que não há necessidade de cumprir o horário se havia algo tão importante em jogo. Por que não adiaram? Não tinham fé na possibilidade de Lula ter a permissão de sair ou depois das proibições não interessava mais sair? Jamais saberemos, os envolvidos darão suas versões e seremos condenados a acreditar ou não nelas, sem nenhum fato que sustente nossas crenças.
De qualquer forma, o episódio expôs os que não valorizam nem protegem a família, ainda que façam um discurso completamente diferente.
Pessoas sem experiência de vida podem fazer discursos contundentes, mas muito raramente vivem como pregam. Seja o “Socialista de Iphone” ou o “Meritocrata Hereditário”, são apenas figuras patéticas que, encantadas com o som da própria voz, tentam enfiar goela abaixo da população que trabalha e tem responsabilidade os conceitos de um mundo fantasioso, em que todo inexperiente tem razão.
Pode ser que alguns formadores de opinião e políticos se desculpem por tentar iludir o cidadão comum com essa argumentação imoral, pode ser que outros batam o pé no direito de ser imoral e atacar a família como instituição. Tanto faz. Para eles, não há como voltar atrás em uma reação que diz nada sobre Lula mas muito sobre quem vociferou julgamentos injustos sobre a família de outra pessoa. É na tempestade que se conhece o marinheiro.
Quero agradecer antecipadamente as reações com xingamentos pessoais ou as que consideram bobagem ser ético e preservar a família quando se trata de adversário ou inimigo político. São o exemplo vivo e prático da tese que defendo no texto: quem tem princípios tem, quem não tem acaba derrubando a máscara.
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