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A literatura econômica consagrou as formas básicas de se realizar o ajuste fiscal: via redução de gastos públicos ou via aumento de tributos, ou uma mistura dessas alternativas. Com efeito, o governo passado produziu uma redução na relação dívida/PIB via redução de gastos públicos e redução de tributos. O governo atual busca o ajuste fiscal via combinação de aumento de tributos e aumento de gastos. São escolhas legítimas decorrentes do processo eleitoral. A agenda vitoriosa das urnas sempre pregou um aumento de tributos para financiar aumento de gastos. Nenhuma novidade até aqui.
Circula em Brasília que o governo federal irá tentar alterar a forma de contabilizar as despesas com juros decorrentes de precatórios nas contas públicas. Também pretende alterar a legislação vigente (especificamente a Emenda Constitucional 113/2021) para possibilitar um volume maior de pagamentos de precatórios. Independentemente de ter ou não mérito, essa mudança abre espaço para aumento do gasto público em 2024.
Vamos às origens do problema. Em 2016, com a aprovação do teto de gastos, o governo federal ficou impedido de gastar acima de determinado limite, e as despesas com precatórios foram mantidas dentro desse limite. Esse foi um erro do teto de gastos. A despesa com precatórios não depende do governo federal; depende exclusivamente de decisões judiciais que o governo federal é obrigado a cumprir. Em 2016, a despesa com precatórios federais estava ao redor de R$ 37 bilhões (valores reais corrigidos para preços de junho de 2021). Em 2021, esse valor já tinha subido para aproximadamente R$ 56 bilhões (valores reais corrigidos para preços de junho de 2021). Em 2022 essa despesa alcançaria incríveis R$ 90 bilhões. Simplesmente não havia espaço no teto de gastos para uma expansão dessa magnitude decorrente de processos judiciais.
O que realmente chama a atenção é a maneira como o executivo federal decidiu encaminhar a questão dos precatórios: em vez de mudar a legislação de precatórios via Congresso Nacional, o governo Lula recorreu ao STF
Para resolver o problema referente ao aumento exponencial nas despesas com pagamento de precatórios federais, os principais nomes da equipe econômica à época se dividiram: parte queria retirar os precatórios do teto de gastos e pagá-los integralmente, solução simples que envolveria uma PEC. Outra parte da equipe preferia uma solução um pouco mais sofisticada: manter os precatórios dentro do teto de gastos, mas pagar apenas parte deles e permitir que outra parte pudesse ser utilizada em processos de concessões e privatizações, e também em outros tipos de ajustes de encontros de conta junto ao governo federal. Essa solução foi a vitoriosa e resultou na PEC dos Precatórios de 2021 (transformada na Emenda Constitucional 113/2021). Pesou a favor dessa alternativa a preocupação com a inflação decorrente de tamanho aumento nos gastos públicos (que ocorreria caso a totalidade de precatórios fosse paga). Essa solução também resolve um problema estrutural, qual seja, o aumento dos gastos com precatórios não é conjuntural e continuaria a pressionar as contas públicas por anos. A Emenda Constitucional 113 foi uma maneira elegante de alinhar incentivos em prol de encontros de contas com o governo federal, combater a inflação, e resolver estruturalmente o aumento dos gastos públicos decorrentes de ações judiciais.
É justamente essa PEC de Precatórios que o governo atual quer que seja declarada inconstitucional, e quer também a permissão de alterar a maneira como são contabilizados os juros e encargos incidentes sobre precatórios. Independentemente do mérito, isso aumenta os gastos do governo em 2024. Mas o que realmente chama a atenção é a maneira como o executivo federal decidiu encaminhar a questão. Em vez de mudar a legislação de precatórios via Congresso Nacional, o governo recorreu ao STF tanto para declarar a Emenda Constitucional 113 (referente ao pagamento de Precatórios) inconstitucional, como também para receber permissão para alterar a maneira como é contabilizada a despesa com precatórios.
A iniciativa acima não é isolada. Em outras oportunidades o governo federal buscou no STF o apoio para que o ajuste fiscal seja realizado via decisões judiciais. A mais recente dessas refere-se a questão da incidência de PIS-Cofins sobre benefícios tributários concedidos por estados, medida que nas contas do governo pode gerar R$ 90 bilhões em arrecadação extra. Confesso que tenho minhas dúvidas sobre esse valor, mas esse não é o ponto deste artigo. De maneira similar, o governo federal tenta alterar a regra de composição do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) com justificativas claramente arrecadatórias, ou seja, para aumentar o percentual de vitórias do governo, aumentando assim sua arrecadação.
Aumento de tributos e mudanças legislativas precisam ser aprovados pelo Congresso Nacional. Para evitar embates no Congresso o governo federal adotou uma inovação acadêmica: o ajuste fiscal pelo lado do judiciário. Isto é, em vez de negociar e obter licença legislativa para aumento de tributos, o governo busca junto a justiça formas de aumentar significativamente sua arrecadação, ou por meio de decisões jurídicas obter permissão para aumento de gastos fora da regra estabelecida pelo Congresso Nacional. O ajuste fiscal via judiciário é feito pelo Poder Executivo com apoio do Poder Judiciário, e o Poder Legislativo fica fora desse processo.
Esse texto não tem por objetivo criticar a estratégia do governo, nem emitir juízo de valor sobre a Emenda Constitucional referente a precatórios. O objetivo do texto é apenas pontuar a estratégia de política econômica adotada pelo governo federal e as consequências que podem advir dessa mudança. Nesse caso específico: aumento do gasto público e incremento na pressão inflacionária decorrente da expansão do gasto público. Além disso, confesso que me parece estranho pedir ao STF autorização para realizar mudança em registro contábil de despesa. O registro contábil de despesas é feito de acordo com normas internacionais.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise