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“O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente” (Lord Acton)
O Brasil possui um sistema tributário complexo, responsável por várias ineficiências econômicas e que dá origem a inúmeros litígios judiciais. Louvável a decisão do Congresso Nacional e do Poder Executivo de debaterem e proporem melhorias ao sistema tributário brasileiro. Esse texto tem por único objetivo enriquecer o debate.
Poucos sabem, mas fui eu, em conjunto com colegas do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que trouxemos a ideia do IVA Dual para o Brasil*. Naquele texto, nós calculamos a alíquota de 26% para que o IVA (Imposto sobre Valor Agregado) tivesse alíquota única. Evidente que, se alguns setores pagarem menos, outros terão que pagar mais. Uma importante diferença de nosso texto em relação à reforma atual é que nós propúnhamos um IVA federal (juntando o PIS e a COFINS) aliado a um IVA subnacional (juntando ICMS e ISS) que era voluntário. Isto é, os estados iriam optar por se juntarem ou não ao sistema de arrecadação federal. Este modelo seria similar àquele adotado no Canadá e, em minha visão, está em acordo com o respeito ao pacto federativo.
Aqui vem minha primeira sugestão aos proponentes da reforma tributária: por que não deixar aos estados o direito de escolher se querem ou não se juntar ao sistema federal? Aproveito e faço a segunda sugestão: é fundamental deixar clara qual será a alíquota a ser paga. Além disso, cabe ao governo deixar um modelo de simulação à disposição da sociedade para que sejam simulados os efeitos da inclusão ou exclusão de determinado setor da alíquota de referência. Por exemplo, a Secretaria de Política Econômica poderia calcular a alíquota única que vigoraria em um modelo sem exceções, e daí simular as alíquotas decorrentes da reforma aprovada na Câmara; bem como o efeito de possíveis novas inclusões de exceções no texto da reforma a ser analisado no Senado. Antes de aprovar o texto da reforma tributária é justo que a população brasileira saiba qual será a alíquota a ser paga.
Tenho uma crítica construtiva ao modelo atual de reforma tributária: está faltando transparência
Agora um alerta: poucos notaram, mas uma alteração tributária poderosa está sendo feita no debate do CARF (Conselho de Administração de Recursos Fiscais). No governo passado os contribuintes passaram a ter maioria no CARF; agora o Governo Federal tenta recolocar a Receita Federal como fiel da balança. Esse texto já foi aprovado na Câmara e se for aprovado no Senado representará um aumento na arrecadação federal.
Tenho uma crítica construtiva ao modelo atual de reforma tributária: está faltando transparência. Qual será a alíquota? Onde estão os projetos de lei complementares que necessariamente precisão ser aprovados para operacionalizar a reforma? Não é possível aprovar uma reforma desse tamanho sem termos clareza quanto às questões básicas do tipo: quanto as escolas irão pagar de imposto? Qual será o imposto pago pelo setor de serviços? Qual será o impacto na minha conta de luz e de telefone? É fundamental deixar claro à sociedade qual será a alíquota paga por cada setor.
Aproveito para registrar uma dúvida: Por que o Imposto Seletivo fará parte da base de cálculo da CBS e IBS? A ideia toda não é deixar o sistema mais simples? Então por que instituir um imposto que fará parte da base de cálculo de outros impostos? Isso reduz artificialmente a verdadeira alíquota da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) – pois aumenta artificialmente a base de cálculo. O melhor é ser transparente e evitar que o Imposto Seletivo faça parte da base de cálculo da CBS e do IBS. Além disso, a definição do imposto seletivo está muito ampla, dando margem para excessos.
Confesso que também achei estranho ser incluída uma permissão para estados criarem impostos sobre produtos primários e semielaborados (provavelmente refere-se a agro e mineração). Para que fazer uma reforma tributária que pode acabar gerando mais impostos do que quando começou? Além disso, temos claramente uma tentativa de aumentar a já elevada carga tributária brasileira.
Pelo período de transição (2026 a 2032) as empresas terão que ter contabilidade paralela, pois os dois regimes tributários (antigo e novo) estarão em vigência
Me parece claro que a reforma tributária aprovada na Câmara efetivamente reduz a complexidade tributária para vários setores da economia. Mas não é verdade que isso ocorra para todos os setores. Toda empresa que está fora do SIMPLES e que opera no regime cumulativo terá aumento de complexidade (devido à necessidade de se adequar ao regime não cumulativo para abater os créditos). Além disso, pelo período de transição (2026 a 2032) as empresas terão que ter contabilidade paralela, pois os dois regimes tributários (antigo e novo) estarão em vigência. Se reduzir a complexidade tributária afeta positivamente o PIB, é possível que este aumento de complexidade prejudique a trajetória de crescimento no curto prazo. Claro que os ganhos de longo prazo podem compensar, mas transparência no debate é fundamental.
Uma dúvida pontual: como ficará o investimento no setor de petróleo? Ou, em outras palavras, como fica o REPETRO-SPED? Essa dúvida é apenas para ilustrar a dúvida que deve estar assolando parte expressiva dos investidores. Afinal, são vários os regimes especiais no Brasil, e não me parece tão claro no texto aprovado da reforma como esses setores serão tributados, ou como irão abater seus créditos, no novo modelo. Estamos falando de bilhões de dólares em investimento que precisam do conforto de uma segurança jurídica maior do que a que foi providenciada até agora.
Ainda sobre a parte referente a consumo, uma dúvida importante refere-se ao cashback: qual a linha de corte? Uma família composta por quatro pessoas, com renda familiar de R$ 2.640,00 (dois salários-mínimos) não se enquadra na linha de pobreza. Na definição adotada pelos formuladores de política essa família pertence à classe média baixa. Pergunto: essa família terá direito a cashback? A julgar pelos comentários que saíram na imprensa, essa família teria que arcar com alimentos mais caros, mas não fará jus ao cashback.
A reforma tributária aprovada na Câmara concentra o poder em Brasília ao dar ao Conselho Federativo poder sobre distribuição aos estados e municípios de recursos arrecadados pelo IBS. Certamente existem vantagens de eficiência econômica associados a essa centralização. Contudo, concentrar poderes sempre traz consigo preocupações referentes à famosa frase de Lord Acton: o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Nossa federação já dá poderes demais a Brasília; confesso que tenho restrições severas a concentrar ainda mais esse poder. Exatamente por isso defendo um IVA Dual Voluntário, no qual os estados possam optar voluntariamente por se associarem ou não ao sistema de arrecadação federal.
Será que o tempo do IVA já não passou e estamos entrando no futuro com um imposto incapaz de endereçar adequadamente os desafios atuais?
Tenho aqui também algumas questões filosóficas: o IVA foi criado no começo do século passado e se popularizou na Europa da década de 1970. Será que não tem nada mais moderno? Será que faz sentido avançarmos num tributo (IVA) desenhado para tributar o comércio de bens quando hoje a base que mais cresce é a de serviços? Não seria possível dar um grande choque de modernização e uso de tecnologia para reduzir a complexidade tributária atual sem necessidade de complexas mudanças estruturais? Como será a nova jurisprudência? Como a incerteza relacionada a essa nova jurisprudência irá impactar os investimentos?
Em 2032, quando esse sistema estiver em vigor, seremos um país que pagou um custo elevado para a transição para um sistema IVA. Pergunta honesta: é esse o melhor sistema no mundo digital e de serviços? Será que o tempo do IVA já não passou e estamos entrando no futuro com um imposto incapaz de endereçar adequadamente os desafios atuais? Será que não estamos avançando na direção errada? Note que poderíamos simplificar muito o sistema atual atacando pelas margens: redução das obrigações acessórias, uso da tecnologia, redução do IPI, e junção de PIS e COFINS, que podem ser feitos por lei ordinária.
Um alerta: a ineficiência de um tributo (perda de peso morto) está relacionada à sua alíquota marginal. O IVA no Brasil não ficará abaixo de 26%, o que o coloca como o segundo maior do mundo (provavelmente será o maior do mundo quando as exceções ficarem claras ao final da reforma). Alíquotas marginais muito altas aumentam a sonegação, e o IVA brasileiro será acima de 26%. O que você acha que irá ocorrer quando se deparar com o seguinte problema: pagar R$ 1.000,00 em um tratamento dentário sem nota fiscal ou R$ 1.260,00 com nota? Entenderam o problema da alíquota marginal elevada?
Várias questões centrais estão sendo endereçadas para leis complementares que não estão disponíveis até o momento. Por exemplo, “tributação no destino” e “compensação de créditos a abater decorrentes de regimes especiais passados” são termos simples, mas cuja definição e clareza fazem muita diferença. Fundamental que o governo explicite o quanto antes os projetos de leis complementares que operacionalizam a reforma tributária. Afinal, como todos sabemos, os detalhes importam.
Por fim, ressalto que alguns pontos simplesmente não poderiam constar dessa PEC por não guardar relação com a tributação do consumo. Dar permissão a prefeitos para, por decreto, aumentar a base de cálculo do IPTU; e tornar progressiva a alíquota sobre herança fazem parte da tributação sobre o estoque de capital e devem ser tratados em outra reforma.
Confesso que prefiro uma política econômica que reduza gastos públicos aliada a uma reforma tributária que reduza tributos, e que descentralize os recursos fortalecendo estados e municípios. Respeito quem pensa diferente, mas acho que estamos a caminhar em direção a uma reforma que irá aumentar a carga tributária e concentrar poderes em Brasília.
* Veja-se "UMA REFORMA DUAL E MODULAR DA TRIBUTAÇÃO SOBRE O CONSUMO NO BRASIL. Texto para Discussão 2418 do IPEA. Setembro de 2018. Autores: Alexandre Xavier Ywata de Carvalho, Melina Rocha Lukic, Adolfo Sachsida, Carlos Wagner de Albuquerque Oliveira e Ernesto Lozardo."
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise