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“Há algo de podre no reino da Dinamarca.”
(na peça Hamlet de William Shakespeare)
Desde a crise do subprime em 2007 e 2008, é possível observar um crescimento da intervenção dos governos federais mundo afora sobre a economia. A mais óbvia dessas intervenções se refere à política monetária conhecida por Quantitative Easing, que nada mais é do que o esforço do Banco Central americano em aumentar a liquidez da economia por meio da expansão da oferta de dólares. Valores superiores a trilhões de dólares foram injetados na economia por bancos centrais do mundo inteiro que temiam uma crise sistêmica. Durante a pandemia não foi diferente, e medidas de estímulo à atividade econômica foram acompanhadas com o aumento da liquidez e da oferta de crédito na economia. Esse movimento é certamente compreensível, dado o tamanho da crise gerada pela Covid-19. Contudo, excessos foram cometidos e se somaram a uma década de política monetária expansionista nos principais países do mundo.
Em 2020, as medidas de restrição à locomoção de pessoas e à produção de bens, para combater a pandemia de Covid-19, tiveram como resultado uma queda na oferta agregada. Por outro lado, medidas de ajuda à população (por exemplo, transferências de recursos para ajudar pessoas que não puderam trabalhar durante a pandemia), associadas a uma política monetária expansionista (que visava irrigar o canal de crédito), pressionavam a demanda agregada da economia. O resultado da queda na oferta agregada combinada com os estímulos à demanda agregada foi o surgimento de um perigoso processo inflacionário em todo o mundo entre os anos de 2021 e 2023.
De fato, em 2022 a inflação atingiu seu maior patamar nos últimos 40 anos nos Estados Unidos, na Alemanha, na França e na Inglaterra. Para combater a alta inflacionária, os Bancos Centrais dos principais países do mundo começaram a aumentar suas taxas de juros. Com efeito, o ciclo atual do aumento da taxa de juros internacional não encontra paralelo nos últimos 40 anos. A velocidade do incremento da taxa de juros mundo afora entre 2021 e 2022 ainda não havia sido observada nas últimas 4 décadas. As taxas de juros internacionais saltaram de aproximadamente 0% para mais de 5% num intervalo de dois anos. “Tem algo de podre no reino da Dinamarca”. Tem algo ocorrendo nos subterrâneos da economia que não estamos observando corretamente. Esse aumento forte e rápido na taxa de juros internacional tem impacto não negligível nos orçamentos das famílias, das empresas e dos governos.
O ciclo atual do aumento da taxa de juros internacional não encontra paralelo nos últimos 40 anos
O aspecto mais evidente do parágrafo acima é o aumento no custo de rolagem das dívidas das famílias, das empresas e dos governos. O aumento da taxa de juros aumenta os custos das hipotecas, das compras a prazo, das dívidas familiares que precisarem ser renegociadas, e reduz a renda das famílias. O mesmo argumento vale para as empresas americanas e europeias que se valeram do crédito barato em 2020 e agora precisam arcar com juros bem mais pesados. O aumento e a velocidade do aumento da taxa de juros internacional têm efeitos bem mais graves do que os observados até agora. Não devemos esquecer ainda que a dívida pública nos Estados Unidos e Europa tem batido recordes históricos. O aumento do gasto público nos principais países do mundo tem agora que ser financiado com taxas de juros bem mais severas do que o padrão dos últimos 40 anos.
O sistema financeiro nos Estados Unidos e Europa também deve estar apreensivo. Afinal, onde é que eles alocaram toda a liquidez injetada nessas economias desde 2008? Foram trilhões de dólares que devem estar agora em algum lugar. Evidente que para onde esse dinheiro foi o preço daqueles ativos aumentou, ou seu custo de financiamento caiu. Meu palpite (e aqui reforço que é um palpite, portanto talvez esteja errado) é que parte significativa desses recursos foram alocados em títulos públicos do governo americano, em títulos de dívidas privadas emitidos por empresas e no mercado de hipotecas. O governo americano aumentou fortemente seus gastos nas últimas décadas, sua dívida subiu e, graças a baixas taxas de juros, o custo de seu financiamento se reduziu. Acredito que este ciclo está terminando e os Estados Unidos enfrentarão cada vez custos mais elevados para financiarem sua dívida pública. E o mesmo vale para diversos países europeus que serão obrigados a comprometer parcelas maiores de seus orçamentos para pagarem gastos com os juros de suas respectivas dívidas públicas.
Além disso, devemos ressaltar que vários bancos concederam empréstimos para negócios que eram viáveis a taxas de juros ao redor de 1%. Com juros ao redor de 5%, é bem possível que vários desses empreendimentos não sejam mais economicamente viáveis e irão ter dificuldades, o que gera nova onda de pressão sobre o balanço dos bancos americanos e europeus. O mesmo argumento vale para as famílias com dívidas, que com juros mais elevados são obrigadas a desembolsar cada vez mais recursos para quitarem seus empréstimos. Adicione-se a isso o fato de que várias empresas americanas e europeias serão obrigadas a refinanciarem suas dívidas a taxas de juros bem mais elevadas, e temos um cenário complicado pela frente.
O sistema financeiro nos Estados Unidos e Europa também deve estar apreensivo. Afinal, onde é que eles alocaram toda a liquidez injetada nessas economias desde 2008? Foram trilhões de dólares que devem estar agora em algum lugar.
Importante ressaltar também que temos vários sinais de alerta mundo afora: a continuidade da guerra na Ucrânia, além de uma tragédia que pode escalar em violência, pressiona o preço de alimentos e energia no mundo, o que representa dificuldades adicionais no combate ao aumento desses preços. Também podemos observar sinais preocupantes na questão dos hedges funds no mercado financeiro americano. A posição vendida em títulos de dois anos no mercado futuro bateu recorde em agosto e, dado o elevado nível de alavancagem dessas operações, tem potencial de desestabilizar o mercado financeiro mesmo na presença de pequenos choques negativos. Além disso, sinais de um problema mais sério no mercado imobiliário chinês não devem ser minimizados. No Brasil, a questão da rápida elevação da dívida pública associada com aumentos recorrentes de gasto público pode nos colocar numa situação complicada.
Para encerrar, faço ao leitor uma pergunta simples: se você tiver que me emprestar R$ 100 para eu pagar em 3 meses, quanto você me cobra de juros ao mês? E se em vez de pagar em 3 meses eu pagar daqui a 10 anos, qual é a taxa de juros mensal que você irá me cobrar? Em situações normais, irá se cobrar juros mais altos quanto mais tempo levar para receber o dinheiro de volta. Pois bem, há mais de 200 dias consecutivos os títulos do governo americano de 3 meses superam a rentabilidade de títulos de 10 anos. Em outras palavras, nos últimos sete meses as famílias e as empresas (e governos estrangeiros) estão emprestando dinheiro para o governo americano cobrando uma taxa de juros mais alta por empréstimos de 3 meses do que empréstimos de 10 anos. Uma sequência tão longa como essa não tem paralelo nos últimos 50 anos. O nome técnico disso é inversão da curva de juros. A inversão da curva de juros precedeu as oito últimas recessões americanas. Winter is coming.
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Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise