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Desde as invasões e o vandalismo do 8 de janeiro de 2023, vivemos um estado de exceção, em nome da “defesa da democracia”. A doutrina da Razão de Estado pode explicar o porquê.
A doutrina da Razão de Estado é um conjunto de teorias que nasce na segunda metade do século 16 com autores italianos e franceses, como Maquiavel, Guicciardini, Della Casa e Bodin. Ela afirma que o Príncipe e os governantes têm de respeitar os direitos dos súditos; mas existem alguns casos nos quais a segurança e a própria existência do Estado estejam em perigo – notem que falamos da existência não do país, da nação ou da população, mas do Estado mesmo, entendido como a autoridade política que domina o território –, e então os governantes podem e devem passar por cima da justiça, da eficiência econômica. dos direitos básicos, dos preceitos éticos e morais, dos direitos civis e penais básicos das pessoas. Esta ideia afirma que haveria uma necessidade maior em nome da qual sacrificar princípios mínimos.
Era a época do declínio da teoria do Direito Divino dos Reis; era preciso mostrar que a autoridade política governava no interesse do povo, mas ao mesmo tempo precisava haver uma certa margem de poder aos governantes para que eles avaliassem quando abrir exceções. Obviamente, muitas vezes essa doutrina foi usada para fins escusos e privados.
A ideia segundo a qual em 8 de janeiro houve uma tentativa de golpe de Estado é essencial para que possa haver essa quebra dos direitos civis e penais básicos das pessoas que temos visto
Esse princípio se aplica ainda hoje. Por exemplo, o Ato Patriótico, dos Estados Unidos, depois do ataque às Torres Gêmeas em 2001, foi um dispositivo legal que permitiu ao Estado quebrar o sigilo bancário, telefônico e de correspondência das pessoas para investigar e evitar eventuais outros ataques terroristas, em nome da “guerra ao terror”. O mesmo aconteceu no Brasil quando, durante a ditadura militar, o Ato Institucional 5, em nome do combate às atividades revolucionarias, autorizou o presidente a fechar o Congresso Nacional, cassar deputados e suspender direitos das pessoas.
Outra aplicação deste princípio é o segredo de Estado colocado sobre alguns documentos; recentemente, Lula negou 1.339 pedidos de informação e colocou sigilo em vários casos, que vão da agenda da primeira-dama até conversas diplomáticas sobre o caso Robinho e a lista dos militares do Batalhão de Guarda Presidencial que estavam trabalhando na Praça dos Três Poderes exatamente no 8 de janeiro de 2023. Funcionários (geralmente diplomatas ou militares) do Estado podem, eventualmente, não responder às perguntas de um juiz em processos judiciais, alegando que há um segredo de Estado que acoberta aquela questão.
A Constituição brasileira prevê três tipos de estado de exceção: estado de sítio, estado de defesa e intervenção federal; apesar das diferenças, todos buscam restabelecer ou garantir a normalidade, a ordem estabelecida e a segurança do Estado. O Estado pode invocá-los, mas isso deveria ser feito explicitamente e aconselha-se que dure um tempo restrito; terminando a necessidade, suspende-se o dispositivo.
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Dessa forma, a ideia segundo a qual em 8 de janeiro houve uma tentativa de golpe de Estado, de subversão das instituições, de ataque à democracia, é essencial para que possa haver essa quebra dos direitos civis e penais básicos das pessoas que temos visto. Por isso se fala tanto em “defesa da democracia”. Muitos até o reconhecem implicitamente, quando admitem que se está cometendo ilegalidades, mas logo acrescentam algo do tipo “foi necessário”, ou “quem critica o STF parece que não viu o que houve no 8 de janeiro, parece que não estava aqui, parece que não se lembra”, ou ainda “agora tem de parar”. Eles admitem, implicitamente ou explicitamente, que há direitos sendo violados, mas alegam que isso foi e é necessário para garantir a segurança do Estado, ainda que temporariamente.
“Democracia” não é um termo vazio; é um conceito cheio de sentido, um conceito que na nossa época legitima até o estado de exceção. A política se baseia em conceitos, e é a doutrina da Razão de Estado que justifica o estado de exceção.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos