STF tem grande responsabilidade sobre déficit democrático brasileiro ao promover censura, desmontar combate à corrupção e usar padrões diferentes dependendo da preferência política de quem é processado.| Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
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O Brasil acabou de ser rebaixado no Ranking Internacional de Democracia da The Economist, perdendo seis posições e ficando na categoria “democracias falhas”. O país recebeu nota 5 (em uma escala de zero a 10) na dimensão “funcionamento do Estado”, que inclui paralisia legislativa, transparência, corrupção, accountability, confiança da população nas instituições etc. O relatório cita explicitamente o conflito entre STF e X, e alega que “restringir o acesso a uma grande plataforma de mídia social dessa maneira por várias semanas não tem paralelo entre países democráticos. A censura de um grupo de usuários ultrapassou os limites do que podem ser consideradas restrições razoáveis à liberdade de expressão, especialmente durante uma campanha eleitoral. Tornar alguns discursos ilegais baseado em definições vagas é um exemplo de politização do Judiciário”. O relatório também cita tentativas de golpe de Estado e o papel político das Forças Armadas. Tudo muito grave, claro. Mas, além dessa questão específica de curto prazo, há um problema de déficit democrático mais amplo.

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Há uma sensação difusa de que a política simplesmente não responde às demandas populares; que os políticos fazem o que querem; que, até quando a população ganha alguma coisa, depois os políticos ganham duas vezes mais de volta; enfim, que Brasília não representa o Brasil. Não se trata só disso: a elite política brasileira é afastada da população; há muitas minorias organizadas que pilham o orçamento por meio do lobismo; há muita concentração de poder; a separação de poderes não existe, e o Estado de Direito já se foi.

Muitos concordam em desrespeitar os direitos mais básicos do inimigo (não adversário) político e desejam que ele simplesmente desapareça do cenário político nacional

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Quase não há referendos e plebiscitos – em toda a história do país, foram apenas quatro,o último deles em 2005, sobre desarmamento. A população votou de uma forma (não obstante a propaganda contrária do regime), e o Estado fez exatamente o contrário da posição vencedora nas urnas.

Junto com os processos judiciais da Operação Lava Jato, houve também um movimento popular de apoio ao combate à corrupção, demonstrando vontade de mudança. O povo tinha despertado, estava participando do processo democrático, e até houve alguns resultados importantes – prisões de gente poderosa, devolução de dinheiro, o começo de algumas reformas –, mas o que aconteceu depois? Foi tudo revertido!

A cultura política também padece de um enorme déficit democrático. No mesmo ranking da Economist, a cultura política brasileira é a dimensão que recebe a nota mais baixa (5/10). Ainda há 8% da população que é nostálgica da ditadura, embora esse número já tenha sido de 23%. Muitos concordam em desrespeitar os direitos mais básicos do inimigo (não adversário) político e desejam que ele simplesmente desapareça do cenário político nacional. A violência política aumenta e há celebrações quando adversários políticos são agredidos. É considerado normal ser a favor de deturpar a lei em benefício dos amigos e contra os inimigos, por pura conveniência política. São os mesmos que depois reclamam da “falta de ética na política”.

A presidente da República é cassada, mas é do meu time? Então não vamos tirar-lhe os direitos políticos. Os votos dos juízes aposentados do STF antes contavam porque entraram dois novos juízes que são “do outro lado”, mas depois entraram outros dois que são “do meu lado”? Então vamos mudar a regra. A minha turma invadiu o Congresso, então fechamos um olho; se foram os outros que invadiram e quebraram, então vamos atribuir-lhes o crime de tentativa de golpe. E um lado apoia tudo isso. Os dois lados não se reconhecem como legítimos, não se toleram. Voltaire passa longe daqui. E o que isso gera? Extremismo dos dois lados. E os extremistas não se aceitam. Um círculo vicioso.

Como já escrevi em outras ocasiões, não o caso de se falar tanto em “defesa da democracia”, que “a” é democrático e “b” é antidemocrático aquilo outro. Em países com democracia plena, nem se fala disso, porque se trata de algo consolidado. Quem mais fala em “democracia” não a pratica: apoia ditaduras mundo afora e aprova medidas autoritárias domesticamente. Um enorme déficit democrático nas instituições e na cultura política.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]