“A Acrópole de Atenas”, de Leo von Klenze, com o Areópago em primeiro plano.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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As coisas mudam em continuação, novos fenômenos acontecem, novas palavras surgem para defini-los, e aí emerge a necessidade de outros termos para definir os velhos fenômenos precedentes. Por exemplo, o relógio sempre se chamou “relógio”; o termo “relógio analógico” surgiu apenas depois da invenção do “relógio digital”; “animal silvestre” começou a ser usado para distingui-los dos “animais domesticados e domésticos”; o “leite integral” surgiu depois da invenção do leite desnatado; o termo “violão acústico” foi inventado para definir o violão normal após o surgimento da guitarra elétrica... e assim por diante.

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Depois do surgimento do “inglês americano”, começou a se falar em “inglês britânico” para se referir à língua falada na Grã-Bretanha, assim como no Brasil se distingue entre o português (brasileiro) falado aqui e o “português de Portugal”.

Recentemente, começamos a falar em “aula presencial”, “reunião presencial”, “trabalho presencial”, depois do surgimento das aulas, reuniões e trabalhos remotos. Também inventamos o termo “violência física” depois de termos inventado o termo “violência psicológica”. Com o aparecimento dos “satélites artificiais”, também inventamos o termo “satélites naturais” (para definir a Lua, por exemplo). Agora temos “comida orgânica”, que foi o que sempre existiu até a Revolução Verde e a invenção dos fertilizantes e dos pesticidas. Temos também a “infância desconectada”, para falar de crianças que crescem sem celular.

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Os Founding Fathers americanos inventam a “democracia representativa” e, portanto, aquela da Grécia clássica virou “democracia direta”

Todas essas palavras são neologismos para identificar algo tradicional, depois que surgiu algo mais recentes e novo. É o fenômeno da “retrinomia”.

Talvez, em breve, vejamos termos como “carro guiado”, “leite com lactose”, “carne de animal”, “óculos não aumentados”, “casa não conectada”, “roupas não inteligentes”, “educação sem IA” e “foguete sem ré”.

A retrinomia também existe na política. A Primeira Guerra Mundial era antes conhecida como a “Grande Guerra”, mas depois da Segunda Guerra Mundial a coisa mudou. Os termos “guerra convencional” e “guerra assimétrica” passaram a ser usados depois que surgiram novas modalidades como guerra de guerrilha e ciberguerra. Para tentar evitar a guerra, sempre tivemos a diplomacia. Recentemente surgiu a “diplomacia privada”, ou “diplomacia corporativa”, daí a necessidade de cunhar um novo termo, “diplomacia pública”.

Hoje, no debate sobre a “austeridade” (fiscal), há os favoráveis e os contrários. Mas nem sempre foi assim. Antes de John Maynard Keynes, todos os Estados do mundo tentavam manter as contas públicas em equilíbrio, e era consenso que não se podia gastar mais do que se arrecadava. Keynes revolucionou tudo dizendo que “o Estado não é uma empresa”, e por isso pode fazer déficit e dívida (pois é com ele mesmo), pode gastar à vontade. Austeridade virou “coisa de liberal”.

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Os Founding Fathers americanos inventam a “democracia representativa” e, portanto, aquela da Grécia clássica virou “democracia direta”. Conceitualmente, essa democracia norte-americana representativa sempre foi uma democracia obviamente liberal; mas, depois da moderação de alguns socialistas e do surgimento da “social-democracia”, popularizou-se o termo “democracia liberal”.

“Propriedade privada” é um pleonasmo, pois a propriedade já é sempre privada, pois é “própria”. No entanto, depois que surgiu o conceito de propriedade estatal, pública ou coletiva, foi preciso começar a falar em “propriedade privada” (alguns ignorantes até inventaram, aqui no Brasil, o errado “propriedade privativa”!). Estamos tão acostumados às mentiras nas eleições que, às vezes, o termo “estelionato eleitoral” parece até um pleonasmo ou outra retrinomia.

Chegou a hora de pensar se, no futuro, talvez tenhamos “lideres humanos”, “nação física”, “política sem algoritmos”, “cidadania territorial” ou até “democracia humana”. Afinal, vocês não estão lendo essa coluna em um “jornal impresso”!

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]