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Alexandre Borges

Alexandre Borges

Racismo

A grande família

Amy Cooper racismo no Central Park
Amy Cooper durante flagrante de ato racista no Central Park. (Foto: )

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A morte de George Floyd está completando um mês nesta quinta e, desde que o vídeo com seus últimos momentos viralizou, a América está mergulhada numa onda de protestos cada vez mais violentos e sem prazo para terminar. Poucas horas antes do malfadado evento em Mineápolis, outro choque racial simbólico aconteceu em Nova Iorque e que merece ser resgatado agora. Antes, um parêntese.

Das profissões mais antigas do mundo, a de tanoeiro é das mais ameaçadas de extinção. A fabricação e reparo artesanal de tonéis, vasilhames de madeira e barris, presente desde os primórdios da civilização e passada tradicionalmente de pai para filho, está cada vez mais restrita à produção de pipas de carvalho para uísques e vinhos sofisticados, atraindo cada vez menos aprendizes. Sem o trabalho de tanoeiros, Jesus dificilmente teria feito seu primeiro milagre transformando água em vinho.

A palavra para tanoeiro em inglês é “cooper”, um dos sobrenomes mais comuns em países onde a língua de Shakespeare predomina, e você certamente é capaz de lembrar de alguns como os atores Bradley e Gary Cooper ou o âncora da CNN Anderson Cooper. Antes que você mencione Alice Cooper, lembre que este é o apelido do roqueiro septuagenário Vincent Furnier, um nome nada artístico.

Muitos sobrenomes em inglês são originados de profissões, começando pelo mais comum de todos, “Smith” (ferreiro). É impossível traçar uma origem única para todos os Cooper, não apenas pelo nome ter sido adotado por muitos tanoeiros britânicos medievais sem qualquer parentesco entre si como também por ser um “slave name” comum, daqueles adotados por escravos e passados aos descendentes.

A manhã de um domingo comum no Central Park, no último dia 24 de maio, uniu os destinos de Christopher e Amy Cooper, ele negro e ela branca, dois americanos com o mesmo sobrenome, nenhum parentesco conhecido e uma história que ligará ambos para sempre. Amy passeava com seu cachorro num trecho do parque conhecido como “The Ramble” quando foi vista por Christopher, que alertou educadamente ser proibido cães sem coleira naquele local. Começava o incidente que, depois de postado pela irmã de Christopher, já foi visto 45 milhões de vezes apenas no Twitter.

Amy reagiu ao aviso dando uma desculpa, mas com a insistência de Christopher para que ela respeitasse as regras, ela sacou o celular e passou a gritar dizendo que ligaria para a polícia avisando que estava sendo ameaçada “por um homem afro-americano”. Christopher manteve a calma, filmou tudo e a atitude injustificável e racista de Amy acabou exposta. Amy depois tentou se desculpar publicamente, Christopher pediu para que parassem com as inúmeras ameaças à vida dela quando o caso ficou famoso, mas Amy acabou demitida de um cargo de chefia da Franklin Templeton, uma holding bilionária financeira, e seus problemas podem estar apenas começando.

O momento mais icônico (e menos comentado) do vídeo é quando ela ameaça ligar para a polícia e Christopher, que filmava tudo, calmamente incentivou Amy a fazer a ligação. De onde viria a tranquilidade dele com o desfecho positivo do caso? Por que Christopher se sentia tão certo de que uma mulher branca poderia ligar para polícia aos prantos pedindo socorro por conta de uma denúncia falsa de assédio de um homem negro e, ao final, a verdade iria prevalecer? De onde vinha a segurança, consciente ou não, de Christopher e sua irmã Melody sobre o apoio que receberiam nas redes sociais?

É possível que um aspecto muito relevante do episódio, já que atos de intolerância, racismo e denúncias falsas são tão antigos quanto a própria humanidade, tenha passado debaixo do radar e a oportunidade de uma lição importante pode ter sido perdida pela nação de Abraham Lincoln, Martim Luther King e Barack Obama.

Ninguém há de esquecer as feridas da escravidão na América, um país que fez sua guerra mais violenta entre abolicionistas e escravistas entre 1860-65 e que poderia ter terminado com a nação dividida em duas. Ao final de cinco anos, a Guerra Civil matou 2% de toda população americana. Um em cada quatro soldados nunca voltou para casa. A vitória dos abolicionistas foi dura e lavada em sangue. A luta pelos direitos civis estava apenas começando.

Há algo na complexa história americana que criou as pré-condições para uma vida de conquistas pessoais e profissionais notáveis para negros como Christopher e Melody, dois muito bem sucedidos escritores e roteiristas, e que passou a eles a segurança de que a chegada da polícia levaria ao reestabelecimento da justiça e um final feliz para ele, a verdadeira e evidente vítima do episódio.

Não há laços de sangue conhecidos entre Christopher e Amy Cooper, mas a coincidência de seus sobrenomes pode servir de norte para a bússola moral de uma nação que busca soluções viáveis e maduras para os conflitos desencadeados pelo brutal assassinato de George Floyd.

Quando ativistas radicais nas ruas, na academia, nas redações e no showbiz incentivam o caos, a depredação de patrimônio, o vandalismo e a demonização de tudo relacionado a América e sua história, podem estar, a partir de uma revolta justificável contra atos racistas, perdendo de vista a sociedade imperfeita mas única que seus antepassados construíram e que, com todos os problemas sociais e questões que merecem atenção e ação imediata, não tem comparação com qualquer outra em termos de inclusão, diversidade e oportunidades para todos.

Assim como faziam os velhos tonéis de carvalho produzidos com trabalho árduo, talento e técnica há séculos por tanoeiros, é a América curtida por gerações de imigrantes, escravos e nativos em torno de um ideal de vida, liberdade e busca da felicidade que merece, hoje e sempre, ser preservada.

Conteúdo editado por: Rodrigo Fernandes

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