As comparações da vida de Castor Gonçalves de Andrade e Silva (1926-1997) com Pablo Escobar ou Michael Corleone não são exageradas ou frutos mais baixos da árvore das analogias. O capo di tutti capi carioca que emerge de “Doutor Castor” (2021), disponível na Globoplay, é a opera do malandro da vida real, da cidade que tem suas entranhas expostas ao som de um samba-enredo.
Filho e neto de pioneiros do jogo do bicho na cidade, o contraventor com nome de um roedor que não faz parte do grupo dos vinte e cinco da loteria criada pelo Barão de Drummond em 1892 é um “personagem irresistível” nas palavras do diretor e co-roteirista do documentário, Marco Antonio Araujo. Um dos protagonistas da história do Rio de Janeiro do século passado, Castor de Andrade recebeu uma anamnese épica e inescapável.
“Doutor Castor” merece aplausos por não relativizar os crimes de Castor de Andrade ou embarcar na narrativa festiva do bom ladrão, chamando tudo pelo nome. Não espere de Araujo mais condescendência com o bicheiro do que Truman Capote teve com Richard Hickock e Perry Smith. A moralidade de seu protagonista não é superior a de um mafioso de Martin Scorcese, um vilão de Quentin Tarantino ou um nobre de George R. R. Martin.
Como um bilionário árabe, russo ou chinês disposto a comprar reputação no Ocidente, a série faz um passeio carnavalesco pela ascensão e queda do capo que faz seu sportswashing com o pequeno e provinciano Bangu Atlético Clube, time que seu pai, Zizinho, também foi presidente e “benfeitor”. Depois do futebol, o bicheiro abraça o mundo do samba, assumindo o papel de mecenas e homem-forte da Mocidade Independente de Padre Miguel.
Castor de Andrade circulava com livre trânsito não apenas nos subúrbios cariocas, mas também entre a elite da Zona Sul. O documentário não economiza na revelação de algumas relações próximas do bicheiro, como a amizade com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, ex-todo-poderoso da Rede Globo, com João Havelange, ex-presidente da FIFA, Jô Soares, que entrevistou Castor de Andrade em seu programa, entre outros. Como diz o advogado Michel Assef, havia uma “hipocrisia” entre famosos e ricos da cidade que eram amigos do contraventor em privado, mas evitavam ser vistos ao seu lado em público.
Uma ausência notável em “Doutor Castor”, ambientado em grande parte no Rio de Janeiro dos anos 80 e 90, é de Leonel Brizola, governador do estado por dois mandatos e que tinha alegadamente relações lenientes, para dizer o mínimo, com o jogo do bicho. Ele sequer é mencionado nos quatro episódios, como se não tivesse existido. De passagem, uma referência a Darcy Ribeiro, tratado apenas como “vice-governador” na locução.
Há uma clara tentativa de evitar a citação de nomes de políticos ou partidos, mas apagar Brizola do documentário é uma escolha injustificável do diretor. Em 1994, uma lista com o nome de diversos políticos, supostamente beneficiários de dinheiro do bicho em suas campanhas, foi apreendida no escritório de Castor de Andrade. Entre os citados, César Maia, futuro prefeito do Rio que seria, segundo as denúncias da época, o responsável pela administração dos recursos da contravenção para os políticos ligados a Brizola. Maia nega as acusações.
Um frasista cínico, de inegável talento, Castor de Andrade é citado como tendo resumido assim suas relações com o poder: “não tenho culpa se os políticos mudam, meus negócios continuam”, justificando o motivo de doar para partidos e lideranças de todas as matizes do espectro ideológico. Presidentes, governadores, prefeitos e legisladores passam, mas o jogo do bicho continua.
Castor de Andrade era um poderosíssimo “outsider”, alguém que representava um poder real, com recursos quase incalculáveis, milícia própria e quase onipresente em algumas localidades do subúrbio carioca, mas era também a continuidade de um tipo de estrutura social, transcendente e perene que sobrevive a modismos políticos, voláteis e descartáveis, extintos a cada ciclo eleitoral para dar lugar a novas promessas.
A vida do mais famoso bicheiro do país é um resumo da ideia tão arraigada no Brasil do “anti-establishment”, o personagem que muitas vezes finge estar longe do poder constituído, das elites e das instituições, um tenor da ópera-bufa que vocifera contra a lei e a ordem enquanto, longe dos holofotes, tem ligações umbilicais e estáveis com o sistema, sendo seu sócio oculto, pilar essencial e eterno.
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