Ninguém pode me acusar de qualquer simpatia por Barack e Michelle Obama, mas é preciso confessar dois prazeres que o primeiro documentário da produtora do casal propiciou: vencer o revisionista “Democracia em Vertigem” no último Oscar e ser uma história muito bem contada, econômica na linguagem e com raras e perdoáveis pedaladas ideológicas.
“American Factory” (Indústria Americana, 2019), disponível no Netflix, é um retrato de um país sequestrado pelas elites progressistas e seus barões corporativos das últimas décadas que, sem a menor cerimônia, promoveram uma brutal desindustrialização do coração da maior economia do mundo, causando uma crise social sem precedentes em regiões depois rotuladas pejorativamente de “cinturões da ferrugem”.
O darwinismo social incensado por estes industriais progressistas é a essência do indispensável “O fim da classe média: A fragmentação das elites e o esgotamento de um modelo que já não constrói sociedades”, do geógrafo francês Christophe Guilluy, que oferece uma das leituras mais acuradas e lúcidas das transformações dos últimos trinta anos e que levaram ao momento “nacional-populista” da política atual.
Guilluy mostra, com argumentos que transformam em pó equívocos recentes como o best-seller “Como as democracias morrem” (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), a criação deliberada de excluídos econômicos e sociais nas principais democracias ocidentais, numa ação que ainda inclui a importação indiscriminada de imigrantes de baixa qualificação para disputar, com salários ainda mais baixos, os empregos cada vez mais escassos nos setores exportados por essas elites principalmente para a Ásia.
Em “Protegidos e Desprotegidos”, mostrei como os termos esquerda e direita já não definem com precisão a divisão política causada pela clivagem que separa as elites progressistas urbanas e a tradicional classe média de seus países de origem e que tanto desprezam. Em “A Volta dos Deploráveis”, evidenciei o ódio confesso destas elites e seus intelectuais pela classe média, a mesma que começou a reagir, por puro e legítimo instinto de sobrevivência”, a partir de 2016.
A consequência deste processo histórico recente é a criação de uma classe média que disputa empregos cada vez mais raros, achatada pelo desemprego estrutural e obrigada a barganhar ocupações com remunerações ainda menores pela competição com imigrantes que topam tudo pela oportunidade de viver nas principais democracias do mundo.
Como se tudo isso não bastasse, estas mesmas elites, num raro papel social de inimigos da população de seus países de origem, passam a incentivar que seus representantes na política e na indústria cultural humilhem a classe média como “xenófoba, racista, ignorante, cafona e raivosa”, uma espécie de entulho de um tempo que não volta mais.
É uma gente trabalhadora e que construiu a América, operários muito bem retratados em “American Factory” e que são vistos por estas elites progressistas como um incômodo a ser descartado, velhos saudosos dos antigos empregos da mítica indústria automotiva americana do século passado.
Incapazes de se adaptar as condições impostas pelos parceiros chineses importados por estas elites, são peões num tabuleiro que quer utilizar seus últimos movimentos antes de tirar todos do jogo, substituindo por jovens importados para aceitar o triplo da carga horária por um terço do salário e em condições precárias de segurança e saúde.
Em “O fim da classe média”, Guilluy assume o tom de denúncia que a seriedade que o tema merece e aponta o dedo para os culpados certos. “American Factory” é um retrato hiper-realista de uma realidade cruel mas evita ao máximo se posicionar, mesmo que sua simpatia pelo declínio americano em nome de um mundo que volte, senão à multipolaridade, ao menos a um protagonismo da China, uma ditadura dirigista que povoa os sonhos das mentes progressistas mais autoritárias.
O mundo que “American Factory” promete não é bonito, como denuncia o geógrafo francês em sua obra que nasce clássica. Seu grito pelo fim da aniquilação lenta, cruel e criminosa das classes médias ocidentais, que não terá outra consequência senão uma ruptura social que já se iniciou, merece ser levado a sério por quem ainda tem um pouco de responsabilidade e compaixão.
A classe média sabe que está sob ameaça de extinção e não vai morrer sem, ao menos reagir.
Que as mentes mais sãs possam ajudar a evitar uma nova “rebelião das massas” que tanto mal causou ao século passado. As elites progressistas, tão preocupadas com as “máquinas do ódio”, precisam começar a olhar para o ódio da máquina. Ainda é tempo.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS
Deixe sua opinião