“Precisamos de uma nova declaração de independência”, disse Barack Obama três dias antes de tomar posse em 2009. “Não apenas em nossa nação, mas em nossas vidas”, pedindo que os americanos superassem “a ideologia, a mesquinharia, o preconceito, a intolerância” apelando “não aos nossos piores instintos, mas aos nossos melhores anjos”. Mas o que é ideologia? Aparentemente, não concordar com Obama.
O antecessor de Donald Trump se apresentava como o presidente pós-ideologia ou pós-político, a única opção racional, sofisticada, moderna, elegante, ilustrada, progressista, cosmopolita e acima do divisionismo de gente atrasada, caipira, preconceituosa e tacanha que não era como ele, não falava como ele, não tinha as mesmas ideias que ele. Mas se apresentar como “pós-ideológico” não é, sem si, ideológico? Você sabe a resposta.
Durante a campanha de 2016, Hillary Clinton rotulou, num pronunciamento infame e abjeto, os eleitores de Trump de “deploráveis, racistas, sexistas, homofóbicos, xenófobos e islamofóbicos” e lamentou que “essas pessoas existam”. Era uma declaração chocante mas que apenas explicitava, com uma sinceridade incomum, o que pensa o baronato “liberal progressista” do Partido Democrata. A escolha do moderado Joe Biden como candidato este ano, diga-se, é uma primeira e ainda tímida demonstração de que talvez tenham entendido que desprezar metade da nação não é exatamente uma estratégia eleitoral vencedora.
A elite costeira americana acredita que a desindustrialização e a diminuição da renda média de trabalhadores de baixa escolaridade, causada em parte pela política de importação desenfreada de mão-de-obra barata do terceiro mundo que patrocinam, é um dado da natureza como a chuva e os incomodados que se virem. Neste darwinismo social progressista, ninguém chora pela extinção destes espécimes mal adaptados às mudanças do ecossistema econômico, especialmente se acompanhada pela substituição por indivíduos importados de sociedades com menos mobilidade social e expectativas mais modestas de padrão de vida. Só faltou combinar com o eleitor.
Não há dúvidas de que Jair Bolsonaro e seu núcleo duro político souberam captar e canalizar o sentimento do eleitor para o candidato visto como o mais antipetista, dando ares de novidade ao velho voto populista rebatizado de "anti-establishment"
Este tipo de desprezo esnobe e insensível não é estranho ao brasileiro que reagiu ao consenso hegemônico progressista na eleição de 2018 sem meios tons, dando um recado que muitos dos destinatários ainda resistem em ouvir e entender. Não há dúvidas de que Jair Bolsonaro e seu núcleo duro político souberam captar e canalizar o sentimento do eleitor para o candidato visto como o mais antipetista, dando ares de novidade ao velho voto populista rebatizado pela marquetagem bolsonarista de “anti-establishment”. A adesão de Paulo Guedes completou o serviço trazendo a Faria Lima para o barco e o resto é história.
Não há nada de errado em ideologias, que são sistemas que tentam encapsular uma visão de mundo com alguns códigos éticos e de conduta. A própria negação do dissenso democrático é, em si, uma ideologia “essencialista”, que acredita num estado administrativo, eficiente, repleto de gestores profissionais, técnicos, experts e burocratas que pairam acima das divisões políticas, das visões de mundo, buscando sempre soluções “científicas” para a condução da sociedade. A tecnocracia é uma doença espiritual em essência, obra de psicopatas alienados que negam a natureza humana e tentam sufocar qualquer divergência em nome de um racionalismo que perverte a própria razão.
O projeto ideológico bolsonarista funcionou na campanha, mas pode ser um desastre na condução do país e explica parte do atual momento de radicalização, expurgos internos e tensionamento que beira o paroxismo, com frituras públicas de qualquer colaborador com alguma voz própria ou independência. A rejeição à tecnocracia não pode ser confundida com anti-intelectualismo terraplanista e templário, uma caricatura que perverte a idéia conservadora de respeito ao bom senso, às tradições populares e os costumes. As reações do presidente às mortes causadas pelo coronavírus provam que nem sempre os tecnocratas possuem o monopólio da falta de empatia.
A aposta atual na “revolução permanente” e na narrativa que tenta explicar tudo e todos com bordões políticos radicais e o combate a espantalhos ideológicos dá sinais de desgaste e uma capacidade decrescente de convencer a opinião pública. Após o racha com Sérgio Moro e o lavajatismo, a entrega de parte da política econômica para militares desenvolvimentistas e o namoro nada acanhado com o Centrão, é cada vez mais difícil explicar fisiologia com ideologia.
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