Os idiotas da objetividade vão sempre tentar confinar a discussão das questões raciais a leis, políticas públicas, estatísticas e dados, mas para entender a essência humana do problema é preciso, claro, recorrer a Shakespeare. “Otelo” e “O Mercador de Veneza” são, acredite, as duas mais sofisticadas e complexas reflexões sobre racismo e preconceito já produzidas pela mente humana. Se “O Mercador de Veneza” (1598) reduz o antissemitismo a pó com o clássico monólogo de Shylock, é em “Otelo” (1603) que o racismo encontra sua mais instigante e criativa abordagem.
Apenas para refrescar a memória: Otelo é um mouro, um negro muçulmano do norte da África que defendia o reino de Veneza como general. Otelo era um militar reverenciado pela bravura, lealdade e honra pela corte, o que evidentemente irritava Iago, seu subordinado e, para mim, o maior vilão criado por Shakespeare. Enquanto outros vilões de suas peças eram motivados por poder ou amor, Iago cometeu seus crimes por inveja, o único dos pecados capitais que não traz qualquer prazer, mesmo que fugaz, ao pecador.
A raiva de Iago em relação ao general é exacerbada quando ele se sentiu preterido na promoção ao posto de tenente. Com uma capacidade única de manipulação, Iago cria um plano para destruir Otelo revelando ao senador Brabâncio que sua filha Desdêmona havia fugido para se casar com o mouro às escondidas, uma história escandalosa que envolvia o negro africano e a rica herdeira da elite de Veneza. Brabâncio resolve matar Otelo mas eles acabam se encontrando numa reunião com o Duque de Veneza. No encontro, o Duque é convencido de que não houve nada além de uma verdadeira história de amor e Otelo é inocentado.
O plano de Iago passa então a ser ainda mais ardiloso e perverso: ele parte para convencer Otelo de que sua esposa teria um caso extraconjugal com o jovem e carismático Cássio. Com uma série de ações que vão levando aos poucos o marido a acreditar na infidelidade da esposa, Iago consegue que o general finalmente perca o controle e mate Desdêmona por ciúme. Com o plano revelado pela mulher de Iago, Otelo entende o que fez e se mata ao lado do corpo da esposa.
“Otelo” é uma obra única sobre racismo porque mostra as consequencias trágicas do preconceito essencial de Iago, um racista que não aceitava a respeitabilidade social e hierárquica do general africano. O invejoso Iago conseguiu transformar o respeitável general mouro num assassino brutal, bárbaro e covarde, fazendo com que ele se tornasse na vida real a idéia que o racista têm do negro. O entendimento mais atento da história de Iago pode fornecer lições preciosas para todos que buscam combater o preconceito.
A estratégia adotada por Iago fez com que Otelo perdesse sua identidade de homem honrado e marido dedicado e virasse um ser bestial que cometeu um crime hediondo contra uma vítima indefesa. O Otelo que mata Desdêmona pouco ou nada se parece com o militar que merecia todas as honrarias da corte de Veneza. Iago é o racista essencial e, com suas ações, insuperável, já que não apenas odeia Otelo mas age ativamente para transformar o objeto do seu preconceito na sua imagem mental dele.
A preocupação que pode ter motivado Shakespeare a criar um personagem como Iago aparece também no pensamento de Thomas Sowell, um crítico severo do que chama de “subcultura negra” citada em obras essenciais como “Intellectuals and Race” e “Black Rednecks and White Liberals“. Para Sowell, a promoção, patrocinada por brancos da elite progressista americana, de movimentos como o “gangsta rap” que louvam o crime, o sexo irresponsável, a violência e estilos de vida destrutivos, explica em grande parte a dificuldade de integração cultural, social e profissional das últimas gerações de negros do país.
Seriam os ricos da elite ocidental de esquerda os novos Iagos? Estariam os herdeiros brancos culpados incentivando a transformação de parte da comunidade negra na imagem e semelhança de seus próprios preconceitos sobre ela? Estariam alguns rappers e funkeiros, assim como seus fãs, caindo na manipulação dos preconceituosos desta elite que financiam uma “subcultura”, como definiu Sowell, que acaba por eternizar o negro na pobreza? Não existe resposta fácil para esta ou qualquer outra questão séria sobre raça, mas uma boa dose de Shakespeare e Sowell podem ser um bom começo.
O financiamento e incentivo de manifestações sociais que renegam a alta cultura, que distorcem ou invertem a própria idéia de arte e da busca pelo belo, justo e verdadeiro, promovendo idéias que apenas focam em “auto-estima”, “afirmação” e “orgulho” do que se é e não no que qualquer um pode se tornar numa sociedade livre, pode ser a suprema forma de preconceito e racismo. Iago aplaudiria de pé.
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