– “Seu lugar é em casa!”
– “Se não ajudarmos, não haverá mais casa, filho.”
As notícias da morte do cinema foram muito exageradas. Numa época em que todos parecem condenados eternamente ao torpor de um sofá bolorento vendo séries, o anacrônico Christopher Nolan insiste em ser um viajante do tempo, um Dr. Emmett Brown nos lembrando que há histórias que precisam ser vivenciadas em telas que não cabem na sala de casa.
“Dunkirk” é econômico na narrativa, nos personagens e nos diálogos, o que faz o resultado final ainda mais surpreendente. Não há desvios de foco, não há generais em reuniões esfumaçadas com mapas, não há soldados em trincheiras contando como era a vida antes da guerra para que você se envolva e torça por eles, não há cenas de treinamento com sargentos gritando e novatos rastejando na lama, praticamente não há sangue, apenas o tic-tac do relógio que angustia, enerva e, aos poucos, vai minando a força, a resistência e a esperança.
O filme mostra a histórica retirada de centenas de milhares de soldados britânicos encurralados na praia de Dunquerque, norte da França, em 1940. Nolan, fleumático como um mordomo de Downton Abbey, faz sua sinfonia do silêncio e da espera para amplificar a angústia dos que buscam no horizonte a ilha que chamam de “casa”.
O ano de 1940 é particularmente curioso por ser um momento em que a Alemanha nazista e a Rússia stalinista ainda eram aliados, o que talvez explique por que o inimigo praticamente não aparece no filme. A batalha de Dunquerque ocorre um ano antes de Hitler invadir a Rússia e um ano e meio antes do ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, quando a América entra oficialmente no conflito. Naquele final de maio de 1940, é a Inglaterra que luta pela França invadida por tropas nazistas apenas duas semanas antes.
A batalha acontece num momento inicial da maior de todas as guerras, entre a última semana de maio e a primeira de junho de 1940, quando Winston Churchill debutava no cargo de primeiro-ministro. Sua meta era tentar repatriar 30 mil soldados, mas o esforço conjunto dos cidadãos comuns, com suas próprias embarcações de pesca ou passeio, conseguiu trazer quase 340 mil combatentes de volta num dos eventos mais espetaculares da história.
Os críticos mais ideológicos pegaram em armas ao perceber que Nolan colocou em cada britânico a responsabilidade de ser a última instância de salvamento da própria ilha, da França, da Europa e do Ocidente. “Dunkirk” foi chamado de filme-Brexit por seus detratores e é mesmo, mas esse é o grande elogio que se deve fazer ao leitmotiv da obra ou ao seu final, quando o jovem soldado lê num jornal o mais famoso dos discursos de Churchill e repete as eternas palavras: “nunca vamos nos render”. Amém.
O personagem principal na ação de resgate é o cinquentão Dawson, o inglês comum, comedido, sábio e maduro, que perdeu um filho no terceiro mês da guerra e, em vez de se esconder ou proteger o filho remanescente, entende que sem a sua participação direta, de cada britânico, não haverá mais “casa” para retornar: “não há como se esconder disto”, diz.
Prefiro acreditar, como defende Martim Vasques da Cunha, que o nome do personagem não é coincidência, mas uma referência ao historiador galês Christopher Dawson (1889-1970). A obra de Dawson, obrigatória para quem quer realmente entender o que é o Ocidente, traz a mesma mensagem política e cultural do filme em defesa das tradições do continente contra a barbárie.
É impossível não comparar o conservadorismo burkeano e essencialmente britânico de Nolan com o direitismo redneck de Mel Gibson em Hacksaw Ridge, outro presente do cinema para o público em 2017 e mais uma prova de que a Segunda Guerra nunca deixará de fornecer bom material para artistas geniais. Gibson é o cineasta do heartland americano, mesmo tendo sido o pai do épico escocês Coração Valente. Ele é o mais inteligente e apaixonado contador de histórias do cinturão da Bíblia, do novelão caipira, um caubói moderno do cinema. O decadente Oscar deste ano, ao não premiar Hacksaw Ridge como melhor filme, deu apenas mais uma amostra da corrupção moral desta que é a pior geração de Hollywood.
Nolan conta suas histórias como o mitológico designer Jonathan Ive, outro britânico, desenha Macs, iPhones e iPads. A elegância de ambos está sempre a serviço da essência, da alma imortal e do eterno contra a sedução quase irresistível do efêmero, uma armadilha comum em filmes de guerra. Por sorte, Nolan não é um diretor comum. A trilha de Hans Zimmer dá ainda mais profundidade e apreensão às longas tomadas e é a moldura perfeita para cada quadro do filme.
Em “Dunkirk”, os grandes navios de guerra afundam lentamente, como a civilização ocidental torpedeada e bombardeada por todos os lados. Os destróieres são incapazes de fazer o resgate e, ao final, completar a missão. O esforço do aviador que plana sem combustível, a obediência do soldado que espera em fila na praia olhando para casa, não salvarão o Ocidente de seus inimigos, por mais úteis e instrumentais que possam ser.
Há uma melancolia shakespereana que pode explicar a presença de Kenneth Branagh no filme, um convite à loucura de Hamlet em meio a uma ordem prestes a levar embora seu país, seu modo de vida e sua “casa”, mas ela é perfeitamente dosada com a esperança da mensagem de Churchill e com a certeza de que é possível triunfar quando tudo parece caminhar para o fim.
Nolan acredita, com razão, que é o Dawson que deveria existir em cada britânico, o espírito que define a alma ocidental, cada um com seus recursos e por sua própria conta e risco, que tem que estar pronto, disposto e alerta para o chamado do combate contra o mal. Não há mensagem mais importante hoje do que essa.
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