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Alexandre Borges

Alexandre Borges

Pra lá de Ratanabá

Teoria infundada viraliza na internet. Foto: Daiki Pesquisas/Reprodução) (Foto: )

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Antes dos dinossauros, há meio bilhão de anos, havia uma civilização avançada na Amazônia, uma complexa cidade-estado com riquezas incalculáveis e tecnologia avançadíssima, chamada Ratanabá. O descobridor dessa relíquia arqueológica revolucionária é o paulista Urandir Fernandes de Oliveira, presidente da Fundação Dakila e “pai” do ET Bilu. O pesquisador foi recebido em agosto de 2020 pelo então secretário de cultura do governo Bolsonaro e ex-astro de Malhação, Mario Frias.

Segundo a ciência, esse ramo do marxismo cultural que planeja colocar um chip na cabeça de cada brasileiro para dominar o país, o mais remoto parente do homo sapiens, com uma estrutura cerebral que evoluiu dos símios para o que temos nos homens atuais, viveu há 1,5 milhão de anos. Como uma civilização que construiu carros voadores viveu no Paleozóico? Talvez Urandir pudesse pedir esclarecimentos ao ET Bilu.

Já os patriotas, cristãos e conservadores antivax acreditam que há tanta riqueza em Ratanabá que o Brasil poderia se tornar o país mais rico do mundo com ela, o que explicaria o interesse das ONGs estrangeiras, sempre elas, na Amazônia. Urandir, claro, é um cético em relação às vacinas e terraplanista. Com estas credenciais, o fato dele ainda não ter sido contratado como comentarista e colunista de alguns veículos governistas é outro mistério.

Mario Frias, agora candidato a deputado federal, usou suas redes sociais recentemente para emprestar sua notória respeitabilidade intelectual e cultural para defender que devemos levar a sério os indícios da civilização perdida na Amazônia. O ex-secretário chegou a dizer que pretende visitar o local, hoje mais receptivo do que na época dos trilobitas paleozóicos.

O bolsonarismo com raízes no pensamento do falecido médico, militar e político Enéas Ferreira Carneiro (1938-2007) evidentemente tem simpatia por teorias ultranacionalistas que acreditam que o Brasil tem riquezas incalculáveis, especialmente na Amazônia, e nosso subdesenvolvimento não seria culpa dos nossos erros e vicissitudes, mas um plano maligno de inimigos externos auxiliados por traidores da pátria internos que nos roubam desde sempre.

Não há nada de errado com o patriotismo, diga-se. Um sentimento sincero de amor à pátria, à “minha terra” que “tem palmeiras onde canta o sabiá” e que “as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá” cria um saudável sentimento de pertencimento, união e história partilhada, a cola necessária para uma sociedade coesa e funcional. Já o nacionalismo xenófobo e paranoico, que nutre os piores instintos de preservação contra inimigos externos imaginários, está na origem de boa parte das guerras e ditaduras.

A tal cidade perdida na Amazônia evidentemente nunca existiu, assim como o vermífugo que mata coronavírus, mas a lenda ajuda no processo de descolamento da realidade que acomete parte do eleitorado brasileiro. Esta semana, por exemplo, o governo defendeu privatizar e intervir na Petrobras. Como seria possível isso? Talvez em Ratanabá.

A política brasileira está doente e a cura passa, necessariamente, pela reconciliação do brasileiro com a busca desinteressada e genuína pela verdade, mesmo que desafie convicções prévias de quem não teme o conhecimento. Num momento em que a realidade traz sucessivas más notícias, a busca de um refúgio utópico é natural, humano e até previsível, o que não significa benigno. Em vez de todos os problemas atuais, preferimos voar para Ratanabá e nos encastelarmos em bolhas de gente que pensa como a gente e repete os mesmos bordões e palavras de ordem ditadas por políticos, clérigos e influenciadores inescrupulosos.

Quando se abandona a verdade, todo o resto desmorona e a sociedade se torna uma distopia orwelliana. Como o próprio bolsonarismo gosta de repetir, a verdade liberta. O Brasil precisa de um choque de honestidade intelectual para não afundar por décadas numa guerra fratricida em que não haverá vencedores, apenas terra arrasada no final. E assim viraremos, finalmente, uma cidade perdida na Amazônia.

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