O episódio envolvendo o agora ex-funcionário do Google James Damore, 28, e a gigante do Vale do Silício, levanta algumas das questões mais importantes deste século. E você realmente deveria prestar atenção.
A Alphabet, holding controladora do Google, não é uma empresa qualquer. Dona da marca mais valiosa do mundo ao lado da Apple, a empresa fundada por Larry Page e Sergey Brin em 1998 é praticamente monopolista no mercado de buscas na internet com quase 80% de participação. Grande parte das bilionárias receitas do grupo vêm da publicidade digital, num duopólio dividido com o Facebook. Juntos, Google e Facebook possuem 50% do mercado segundo a consultoria eMarketer.
Os produtos e serviços mais conhecidos da Alphabet como o Google Maps, YouTube, Chrome, Gmail, entre outros, ultrapassaram a marca de um bilhão de usuários. Os aparelhos que usam o sistema operacional Android, segundo o Google, já superam dois bilhões de usuários ativos. A holding registrou receitas de US$ 26 bilhões no último trimestre, valor 28% acima do registrado no mesmo período no ano passado. Só a receita de publicidade cresceu 18% comparada ao segundo trimestre de 2016. A Comissão Européia recentemente condenou o Google, num processo antitruste, dando uma multa recorde equivalente a R$ 9 bilhões. A condenação foi comemorada por vários acionistas pelo “baixo valor”.
Os números impressionam mas não contam toda história. O Google não é apenas um gigante empresarial, é também o símbolo maior da geração internet, fornecedor de alguns dos serviços mais populares e essenciais da sociedade da informação, patrocinador e entusiasta de um estilo de vida despojado, com escritórios coloridos e “divertidos”, repletos de nerds geniais num ambiente jovem e amigável como mostrado na comédia “Os Estagiários” de 2013. O Google adotou o lema “Não Seja Mau” como uma síntese de suas práticas empresariais, tema que se confunde com a empresa mesmo depois de “aposentado”.
O Google adotou o lema “Não Seja Mau” como uma síntese de suas práticas empresariais, tema que se confunde com a empresa mesmo depois de “aposentado”.
Uma imagem positiva do Google é crucial para que seu poder incomparável não gere pesadelos e calafrios na opinião pública. Se uma única empresa concentra quase toda informação digital que existe, que sabe praticamente tudo sobre todo mundo que faz parte do mercado consumidor no planeta, é preciso acreditar que a empresa é tão impessoal e racional nas suas decisões como governos e empresas públicas deveriam ser.
Assim como a Receita Federal não deve escolher contribuintes para jogar na malha fina por motivos políticos, uma empresa com acesso a uma quantidade inimaginável de informação sobre o que quase todo habitante do planeta conversa por email, como usa seu celular, por onde anda ou o que busca na internet, precisa também contar a mesma confiança da população de que toma decisões com critérios apenas técnicos e sempre em nome da melhor prestação de serviço ao consumidor. O Google precisa necessariamente “não ser mau” para poder coletar, armazenar, processar, ordenar, classificar e utilizar o universo de dados que tem em seus servidores e na “nuvem”.
Nos últimos dias, o mundo começou a se dar conta, antes tarde do que nunca, de que a empresa dos jovens geniais que usam roupas surradas e casuais, das paredes coloridas e salas repletas de almofadas e videogames, dos quase indispensáveis serviços “gratuitos” que servem de infraestrutura para a vida digital de todos nós, é tudo menos uma corporação inofensiva, aberta e democrática, com motivações puramente técnicas e que tem na “diversidade” um dos seus valores mais fundamentais.
Os titãs do Vale do Silício, que concentram a parte que realmente interessa do fluxo de informações e da inovação tecnológica do mundo atual, já davam sinais desde os anos 80 que namoravam com a política e abraçavam ideologias muito mais à esquerda do que a média da população americana. Na última eleição, 90% das doações de campanha originadas no Vale foram para o Partido Democrata, um índice alto até para padrões californianos.
Em 2012, Obama teve nada menos que 84% dos votos do Vale do Silício. Entre funcionários do Google, 97% das doações foram para o democrata. Dos funcionários da Apple, 91% do valor arrecadado foram doados para o antecessor de Donald Trump. Em 2016, 99% de todo dinheiro levantado entre funcionários das empresas de tecnologia da região foram para Hillary Clinton. O Partido Democrata, que representa a esquerda americana, reina sozinho entre os nerds que mandam na internet. A mais emblemática exceção é Peter Thiel, o mítico bilionário fundador do PayPal e um dos investidores responsáveis pela saída do brasileiro Eduardo Saverin do Facebook.
Eric Schimdt (foto abaixo), 62, CEO do Google entre 2001 e 2011, atual chairman da Alphabet e dono de uma fortuna avaliada em US$ 11 bilhões, é um dos mais ativos membros e doadores do Partido Democrata. Foi assessor de Barack Obama nas duas campanhas presidenciais, fez parte do conselho de seu governo para assuntos de tecnologia e é considerado um importante influenciador do partido em assuntos ligados a energias renováveis. Se fosse brasileiro, seria um dos bilionários socialistas que bancam Marina Silva.
O Vale do Silício fala em “diversidade” mas é o paraíso do pensamento único quando o tema é política. E as consequências nefastas da opção ideológica hegemônica e radical do centro mundial da internet e especificamente do Google começam a dar os primeiros sinais. E eles não são nada positivos.
O Google é alvo preferencial de ativistas de extrema-esquerda por conta da composição do seu quadro de funcionários. Segundo a própria empresa, 80% dos seus funcionários da área de tecnologia são homens. Em cargos de liderança, 75%. São dados comuns em corporações de tecnologia, mas como o Google é particularmente permeável a pressões políticas de esquerda e tende a aceitar alegremente a patrulha ideológica, criou uma série de ações internas e de publicidade para mostrar aos investidores e ao mundo como está preocupado com o assunto, mesmo que as preocupações ainda não se reflitam significativamente em números.
Além da predominância masculina entre os googlers, há também uma presença notável de 40% de asiáticos entre seus quadros de tecnologia contra 3% de hispânicos e 1% de negros, o que também não coincide com a média da população americana que é composta de 5% de asiáticos, 16% de hispânicos e 13% de negros. Para quem não politiza decisões empresarias de negócios privados, não há qualquer problema numa empresa escolher quem quiser para contratar ou demitir, mas não é assim que as coisas funcionam, especialmente no ambiente cada vez mais problematizador do Vale do Silício.
Asiáticos costumam representar um incômodo tão grande às teses racialistas da esquerda que costumam ser simplesmente ignorados. Se a causa da “falta de diversidade” numa corporação como o Google é da sociedade ocidental branca cristã patriarcal heteronormativa, ou qualquer outro clichê cafona do tipo, como explicar que 2 entre cada 5 funcionários da área de tecnologia da empresa são oriundos da Ásia, uma proporção dez vezes maior que a média total do país?
Um dos quadros mais destacados do Google, membro de um grupo formado por apenas 1% dos seus funcionários com classificação máxima de desempenho, ousou tentar abrir uma conversa honesta sobre “diversidade” após participar de um evento fechado da empresa para funcionários. Ele tem tem uma sólida formação acadêmica, foi campeão de xadrez na infância e é mestre em Biologia Sistêmica por Harvard. O agradecimento recebido pela contribuição foi uma demissão com direito a ataques públicos de vários executivos do grupo, o que deverá render no futuro uma boa indenização para ele.
James Damore (foto acima) fez circular um memorando de 10 páginas em que citava pesquisas que provam o que qualquer um com um mínimo de bom senso sabe: há diferenças biológicas entre homens e mulheres e estas diferenças podem explicar, em parte, o motivo da “baixa” representação de mulheres em cargos de tecnologia. Damore deixou claro em seu texto que é um entusiasta da diversidade e sua intenção com o documento era buscar formas mais eficientes e criativas de engajar mulheres na área e não “perpetuar estereótipos”, como foi lamentavelmente dito sobre o assunto.
O jovem pesquisador não fez um panfleto ideológico mas um paper acadêmico que deveria ser levado a sério num ambiente onde a diversidade de pensamento fosse realmente um valor e houvesse uma busca desinteressada, impessoal, despolitizada e honesta pela verdade. O psicanalista canadense Jordan Peterson, 55, que ganhou fama mundial e conquistou uma legião de fãs ao enfrentar a patrulha ideológica de gênero em seu pais recentemente, revisou o documento e atestou sua qualidade científica.
Ao demitir de forma sumária e ruidosa um de seus melhores funcionários, o Google agiu de forma particularmente autoritária e condenável. O episódio lembra a constrangedora demissão da ex-superintendente do Banco Santander Sinara Polycarpo em 2014, quando uma análise assinada por seu departamento e direcionada apenas aos clientes VIPs trouxe, veja você, uma previsão negativa sobre a reeleição de Dilma Rousseff para a economia brasileira.
Lula pediu sua cabeça para o presidente do banco, Emilio Botin, que sucumbiu à pressão. Sinara, que trabalhou oito anos no banco, não poderia estar mais certa em suas previsões, técnicas e apartidárias. A executiva descobriu depois, assim como James Damore, que nem sempre a verdade é bem vinda. Sinara venceu em primeira instância um processo trabalhista contra o banco pela tentativa de assassinato público de reputação.
Por mais preocupante que pudesse ser a decisão do Santander para bajular Lula, a reação da sociedade poderia ser desde manifestações de repúdio até um boicote aos seus serviços, já que a troca de fornecedores de serviços bancários é algo relativamente simples no Brasil. O caso Google é muito mais complexo.
Os serviços prestados pelo Google são tão importantes para o fluxo de informações da internet que já há um movimento para classificar a empresa e seus concorrentes como “utilidade pública”, assim como são classificadas empresas de luz, água, esgoto, transportes de passageiros, serviços financeiros, planos de saúde, entre outros. A mudança acarreta na criação de uma legislação regulatória específica e muito mais rígida, com a participação de agências reguladores específicas.
Por mais antiliberal que possa parecer um novo marco regulatório para empresas como Google, Facebook ou Whatsapp, é inegável que a interrupção abrupta da prestação de seus serviços ou uma ideologização radical de suas decisões empresariais poderiam ter impactos profundos na vida do cidadão, assim como aconteceria com uma administração politizada de empresas de serviços essenciais e considerados como de utilidade pública.
Tente imaginar, por absurdo, ativistas dirigindo a AES Eletropaulo, fornecedora de serviços de luz da região metropolitana da cidade de São Paulo. Estes diretores poderiam decidir cortar a energia para hospitais que não realizassem abortos? Liberais e conservadores já defenderam o direito de confeiteiros americanos de não vender bolos para festas de uniões homoafetivas, mas é possível comprar bolos e doces em qualquer esquina e a decisão destes confeiteiros evidentemente abre um nicho de mercado potencial para seus concorrentes. É possível aplicar o mesmo critério a produtos e serviços essenciais e que não poderiam, em tese, ser interrompidos ou substituídos com facilidade?
Ninguém vai sequer admitir a possibilidade de que o Google espione as contas de Gmail de seus clientes por motivos políticos, mas a asfixia financeira que o YouTube vem promovendo em canais de vídeo conservadores não ajuda muito a eliminar suspeitas. A própria CEO do YouTube fez declarações públicas duríssimas contra James Damore e seu memorando, dando uma interpretação radicalmente ideológica ao seu conteúdo.
O Google não está sozinho neste caminho preocupante. O Facebook é alvo constante de denúncias sobre suas análises com viés ideológico de esquerda sobre o conteúdo de posts e eventuais punições a usuários e páginas. A rede de Mark Zuckerberg, um bilionário com aspirações políticas e provável candidato a presidente do país no futuro, é também acusada de classificar como “fake news” notícias publicadas usando critérios político-ideológicos.
O Twitter, cujo viés de esquerda é público e notório, chegou ao cúmulo de censurar recentemente um tweet do filho do presidente, Eric Trump, comemorando os números de geração de empregos na economia americana. O tweet foi apagado pelo sistema porque teria “conteúdo sensível”. Sensível para a esquerda americana, evidentemente.
É preciso uma discussão urgente, madura e equilibrada, sobre como lidar com a crescente politização das principais empresas de tecnologia e que possuem o controle de grande parte da informação que circula no mundo. A esquerda pedirá a estatização ou o “controle social”, um eufemismo para intervencionismo fascistóide. Liberais mais ideológicos dirão que “o mercado regula” e pedirão menos regras como solução.
Sou liberal na economia e tenho uma aversão natural a qualquer tipo de regulação estatal autocrática, mas há argumentos respeitáveis dos que pedem ao menos o reconhecimento destes serviços como de “utilidade pública”, o que abre a possibilidade de serem sujeitos a regras como já acontece com empresas de setores também considerados essenciais.
Não tenho ilusões de perfeição até com conselhos setoriais privados ou da sociedade civil, como acontece com o Conar, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, que mesmo não sendo um órgão estatal já foi influenciado por patrulhas ideológicas e tomou decisões esdrúxulas como proibir uma propaganda de cerveja por ter modelo de biquíni no cartaz alegando ser “sensual demais”, mesmo no país do Carnaval e de todo tipo de vulgaridade na TV.
Vou sempre preferir a livre concorrência e menos regulações para atrair novos concorrente ao mercado e desafiar a liderança de empresas que estejam prestando um desserviço ao consumidor ou à sociedade. Independente da sua posição sobre como não deixar a sociedade da informação refém de meia dúzia de corporações cada vez mais ideológicas, não é mais possível ignorar o problema e adiar o debate.
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