Ouça este conteúdo
Se você não foi abduzido pelo mundo invertido de Stranger Things, ou sequer desconfia do que estou falando, perdoe mas o problema é seu. A boa notícia é que você pode consertar essa falha quando quiser, como eu mesmo fiz, maratonando as quatro temporadas da obra-prima dos irmãos Duffer nas últimas semanas. Você vai me agradecer depois.
Já quem não chegou de Marte ontem ainda deve estar sob o impacto dos momentos finais da última temporada. E que temporada. A experiência mais imersiva imaginável dos anos 80 continua com a mesma vitalidade, provocando encantamento e diversão de primeira qualidade. Como muito já se falou da série, vamos colocar uma lupa no que você pode ter deixado passar.
As citações, os easter eggs e tudo que se refere à última década antes da World Wide Web e dos celulares está lá com inteligência e domínio completo da linguagem cinematográfica, lembrando dos blockbusters de Steven Spielberg às pistas de patinação, dos desumanos Gulags da URSS aos pesadelos assassinos com Freddy Krueger (sim, eles escalaram Robert Englund em pessoa desta vez). O núcleo principal do elenco foi mantido, com acréscimos sensacionais como Joseph Quinn, o rebelde Eddie Munson, o amigo mais velho e esquisito da escola que todo mundo teve, líder e bode expiatório do novo núcleo nerd.
A força da comunidade, do companheirismo e do altruísmo dos habitantes de Hawkins, mesmo acossados por demônios e monstros, contrasta com o banditismo soviético que conhecemos bem por aqui também.
Uma das séries de maior sucesso da história da Netflix, Stranger Things não só está mais viva do que nunca. A temporada lançada este ano não deve nada a qualquer uma das anteriores. E é por isso que vale a pena dar um intervalo na intragável política brasileira e falarmos de algo que nos transporta a uma diversão descompromissada, cativante e, nem por isso, descuidada ou desrespeitosa com o público.
Deixando a trama principal de lado, comecemos por um insight sociológico: é possível que você já tenha ouvido falar do conceito de "confiança", ou a predisposição de membros de uma determinada sociedade de acreditar na palavra dos outros pelos valores éticos, morais e dos laços sociais formados entre eles em gerações. O tema é explorado por autores como Francis Fukuyama e Alain Peyrefitte, com referências nas obras de Edmund Burke a Alexis de Tocqueville. Na quarta temporada de Stranger Things, a "sociedade da confiança" é demonstrada em todas as cores.
Joyce Byers (Winona Ryder), agora morando em Lenora Hills (CA) com os filhos Jonathan (Charlie Heaton, cada vez mais parecido com Salsicha, do Scooby-Doo), Will e a adotada Jane "Eleven", recebe uma correspondência misteriosa com uma boneca, enviada diretamente da União Soviética. Ela convida o amigo conspiracionista Murray Bauman (Brett Gelman) para desvendar o mistério e acaba com um pedido de resgate do policial Jim Hopper (David Harbour), que todos davam como morto. Mesmo sem uma prova definitiva de vida, ela confia plenamente na possibilidade de salvar o amigo e vai atrás dele com Murray, sendo traída pelo soviético Yuri Ismaylov (Nikola Đuričko) que depois trai o próprio compatriota Dmitri Andropov (Tom Wlaschiha). Homo homini lupus.
A confiança depositada por Joyce numa promessa tão frágil, nascida pela criação na pequena Hawkins, cidade onde todos se conhecem e a vida comunitária existe na plenitude, contrasta com a corrupção desenfreada e endêmica dos soviéticos, individualistas extremos num país supostamente coletivista que vivem de golpes, contrabando e subornos, o óleo que faz as engrenagens de países ditatoriais não pararem de vez. A força da comunidade, do companheirismo e do altruísmo dos habitantes de Hawkins, mesmo acossados por demônios e monstros, contrasta com o banditismo soviético que conhecemos bem por aqui também.
Ao confiar na mensagem cifrada recebida por correspondência, Joyce lembra que as malas diretas são um fenômeno tipicamente americano, país de dimensões continentais que, ao conquistar o Oeste há dois séculos, precisou criar um sistema de comércio por via ferroviária de costa a costa, algo impossível numa sociedade sem confiança de que os dólares enviados para o outro lado do país não desaparecerão e que a mercadoria chegará exatamente como anunciada nas revistas e catálogos. Um mercado robusto de compras à distância só é possível com confiança entre gente totalmente desconhecida.
O mundo de Hawkins é cheio de coisas estranhas, como indica o nome da série, mas nada mais estranho do que, em 2022, ainda ter gente que não entende o que foi a URSS e o comunismo real
Para quem quiser se debruçar sobre o tema sociológico da confiança, nada mais ilustrativo do que a comparação direta entre o núcleo formado por Joyce, Hopper e Murray, unidos por sentimentos morais dos mais nobres e que acabam por salvar a vida uns dos outros, e os pobres diabos presos atrás da Cortina de Ferro. Nunca foi tão oportuno lembrar o que era a URSS, um pesadelo de fazer o mundo invertido de Stranger Things parecer um parque de diversões. Não esquecemos também que os soviéticos contaram, desde o início, com a prestimosa ajuda de políticos corruptos nos EUA, como o prefeito de Hawkins Larry Kline (Cary Elwes).
A confiança, base de uma sociedade funcional e próspera, é o superpoder que todo habitante de Hawkins, uma típica comunidade interiorana dos EUA, possui. Algo que os soviéticos sequer podiam imaginar e que nós, brasileiros, temos uma vaga ideia. Os irmãos Duffer foram muito criativos ao importar monstros clássicos do Dungeons & Dragons como Demogorgon e Vecna, mas foram ainda mais precisos ao lembrar o pesadelo comunista vivido por oito décadas no país mais extenso do planeta.
O mundo de Hawkins e Stranger Things é cheio de coisas estranhas, como indica o nome da série, mas nada mais estranho do que, em 2022, ainda ter gente que não entende o que foi a URSS e o comunismo real. Se muito professor de história prefere dar uma versão edulcorada do mundo invertido e infernal criado por Lênin, Trótski e Stálin, agradeçam aos irmãos Duffer por corrigirem o erro histórico.