A última edição da revista Piauí traz o polêmico ensaio de Martim Vasques da Cunha, doutor em ética e filosofia política pela USP, em que ele relembra sua peregrinação pela via dolorosa da direita brasileira desde sua descoberta da contracultura liberal-conservadora nos anos 90 até o choque de realidade com a corrupção intelectual promovida pela boçalidade e o totalitarismo neointegralistas.
Martim revela que foi puxado para a margem direita do rio ao nadar contra a correnteza do niilismo, o mal da intelligentsia que se recusa a aceitar a dimensão metafísica da existência. A debilidade epistemológica que inviabiliza o progressismo cria naturalmente um “laço de equivalência negativa” entre diversos agentes políticos de diversas matrizes como liberal, conservadora, tradicionalista e nacionalista. É o terreno fértil para a “rebelião das massas”, uma união de forças distintas, a partir de uma frágil e instável demanda comum e sob a liderança de um líder populista.
O “duro acerto de contas” protagonizado pelo autor consigo mesmo poderia servir de exemplo à esquerda brasileira, supostamente incomodada com a ascensão do bolsonarismo, mas intolerante e vingativa em relação a qualquer um que possa, algum dia, ter apoiado um de seus desafetos. A falta de empatia e tolerância com adversários é, na verdade, uma postura arrogante, esnobe e alienadas em relação ao eleitor médio e seus humores, o que se reflete na cobrança histérica e cínica de pedidos de desculpas imerecidos.
Aos fatos: a esquerda vocifera contra a Lava Jato e seus supostos “exageros”, mas parece ter esquecido de sua contribuição para o clima de pega pra capar da política nos anos 90 com procuradores como Luiz Francisco Fernandes de Souza e sua fúria inquisitória e partidária contra FHC e Eduardo Jorge, com o beneplácito entusiasmado da imprensa. Sem Luiz Francisco haveria Deltan Dallagnol? José Dirceu berrava que o PT encarnava a “ética na política” e que “não rouba nem deixa roubar”. O resto é história.
Há evidentemente um clima tóxico para o debate político no país hoje, mas ele começou em 2018 ou com a Lava Jato? Qualquer analista honesto sabe que a demonização dos adversários, tão antiga quanto a própria política, foi também incensada por petistas e seus acólitos que tratavam todos que não aderiam a seu projeto de poder como fascistas. Banalizar o termo, uma dura descoberta para muitos, é o passe livre para que quem merece o epíteto tenha liberdade de desaparecer na multidão, já que se todo mundo é fascista, ninguém é.
Para ficarmos em outro exemplo recente e óbvio, chega a ser hilariante a tentativa de petistas de apontar o dedo em riste para o governo Bolsonaro por trocar assistencialismo por popularidade e votos entre os mais vulneráveis da sociedade. Ou afirmar, como ouvi recentemente, que é uma situação frágil porque o voto dos pobres seria, naturalmente, da esquerda, e que esse eleitor voltaria por gravidade para o colo vermelho. É wishful thinking que chama.
Que a atual marcha da esquerda para a irrelevância sirva de lição para um entendimento mais generoso e tolerante das crenças e humores da população.
Enquanto a esquerda não romper a amarra ideológica autoilusória e autoindulgente que atribui a si mesma o título de verdadeira representante dos anseios populares, continuará patinando eleitoralmente e só um tsunami político para mudar a maré. Toda análise que atribui um voto não-esquerdista a um engano ou fruto de um problema emocional, fisiológico ou de caráter, cria um fosso intransponível entre ela e o eleitor, o que seus intelectuais ainda lutam para não reconhecer.
O ensaio de Martim Vasques termina sugerindo uma revolução espiritual pela compaixão, o que qualquer cristão assinaria embaixo. O entorpecimento da luta política contra o leviatã tornou o conservador mais cínico e menos cético em relação ao poder, o que é a morte do conservadorismo. A volta da empatia, a reordenação da alma, são fundamentais para, ao final do caminho, se chegar a Roma e não à Atibaia de Wassef.
Quanto à esquerda, ainda acorrentada mentalmente na Atibaia de Lula, que sua atual marcha para a irrelevância sirva de lição para um entendimento mais generoso e tolerante das crenças e humores da população e das minorias que pretende representar, numa conexão real com suas demandas e não as próprias obsessões ideológicas.
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