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Desde a noite da última terça, a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump parecia irreversível. A despeito das denúncias de fraude eleitorais, não totalmente sem indícios, o desafiante deve ser empossado no próximo 20 de janeiro. A Casa Branca deve voltar a ser azul.
A trajetória do bilionário empresário e ex-astro de TV, primeiro presidente que nunca tinha exercido cargo público ou podia ostentar uma sólida carreira militar, que teve uma candidatura desprezada e ridicularizada até a vitória em menos de dois anos, nunca deixará de ser surpreendente. Ela marcou o momento histórico do início da “era populista” em 2016, junto com o plebiscito que aprovou o Brexit poucos meses antes. Nada mais seria como antes.
Trump obteve sucessos inegáveis na economia, com reflexos positivos especialmente nas camadas de mais baixa renda e desempregados. Seus resultados em política externa, como a vitória sobre o nefasto Estado Islâmico, seu notório apoio a Israel, os recentes acordos de paz promovidos no Oriente Médio e, claro, não ter começado uma única guerra, serão sempre menções estelares de seu currículo presidencial. Há muito do que se orgulhar.
O 45º presidente americano foi também o mais velho a ocupar o cargo até Joe Biden, aos 78 anos, quebrar seu recorde no início do ano que vem.
O magnata da construção civil, entre outros empreendimentos, é dono de uma fortuna estimada em US$ 2,5 bilhões e terá um final de vida confortável. Natural e morador de vida inteira de Nova York, Trump já deu sinais que, após o término de seu mandato, mudará para sua mansão cinematográfica em Palm Beach (Flórida), estado que deu duas vitórias eleitorais a ele. O “estado ensolarado” é um destino comum para aposentados.
Antes da pandemia do novo coronavírus, Trump parecia dar sinais de que caminhava para uma reeleição tranquila. Além de resultados inegáveis para apresentar, continuava o mesmo líder energético e carismático, focado e incrivelmente produtivo, pronto para dar mais quatro anos de crescimento e pujança econômica para o país mais rico do mundo, mesmo enfrentando uma das mais ferozes forças oposicionistas da história. Só faltou combinar com o vírus, que fez da América seu maior playground.
Nenhum país registrou tantos casos e tantas mortes por Covid-19 como os Estados Unidos. Nenhum estado foi tão atingido como Nova Iorque, seu local de origem e com o qual teve inúmeras dificuldades de coordenação de esforços para combater e prevenir a doença, tanto pela oposição radical do governador Andrew Cuomo quanto pelo prefeito da sua cidade mais importante, Bill de Blasio, ambos do Partido Democrata e inimigos ferrenhos de seu governo.
Trump tinha 20 anos de idade quando 116 crianças e 28 adultos foram soterrados na vila de Alberfan, País de Gales, numa das maiores e mais traumáticas tragédias da história britânica, episódio que todo fã da série “The Crown” (Netflix) com certeza há de lembrar. As lições de Alberfan são eternas e deveriam servir de reflexão para qualquer líder, especialmente os que não são ou não aparentam ser naturalmente empáticos ao sofrimento alheio, especialmente em casos que provocam comoção nacional.
O deslizamento de resíduos de uma mina de carvão cobriu parte da aldeia em questão de minutos. A Escola do condado de Pantglas foi uma das mais atingidas, tirando a vida de dezenas de crianças e professores em pleno horário escolar em 21 de outubro de 1966. Foi tudo tão rápido que, no momento da tragédia, dificilmente haveria tempo para fuga.
A rainha Elizabeth II foi prontamente avisada e enviou seu marido, o príncipe Phillip, para o local. Seu cunhado, Lorde Snowdon, também seguiu para Alberfan por conta própria, depois relatando que tinha sido a coisa mais horrível que viu na vida. A rainha demorou oito dias para visitar o local, o que marcou sua biografia para sempre.
Elizabeth II fez o que parecia mais racional a ser feito, já que o local estava caótico logo após a tragédia e sua presença poderia causar ainda mais confusão e atrapalhar o trabalho de resgate das vítimas. Quando finalmente apareceu, foi bem recebida pelos moradores e o episódio marca um dos únicos momentos em que a rainha foi vista chorando em público.
Os biógrafos de Elizabeth II dizem que a demora a visitar Alberfan é um dos maiores arrependimentos da sua vida, mesmo que os moradores tenham, em geral, concordado que uma visita durante os dias anteriores não seria adequada. Ela voltou mais quatro vezes à vila e, no 50º aniversário da tragédia, enviou uma mensagem aos seus habitantes com condolências e garantindo que o acontecimento nunca saiu dos seus pensamentos e da sua família.
Durante a atual pandemia, Trump tomou medidas perfeitamente defensáveis, mas pode ter sido pouco eficiente em mostrar empatia e solidariedade aos infectados e às famílias dos mortos, especialmente nos dois debates televisivos dias antes da eleição. Seu foco excessivo na economia e na reabertura do país, ainda em meio à crise, podem ter feito a diferença numa eleição decidida com margens tão apertadas.
Trump é um vencedor e foi um bom presidente. Ele trabalhou incansavelmente por seu país e é, inegavelmente, um patriota. É possível que visitar uma certa vila no distante País de Gales, bem como compreender o papel correto de um líder numa tragédia nacional, poderiam ter sido úteis para sua manutenção no cargo. Ou ao menos ter visto o respectivo episódio da terceira temporada da série “The Crown”.
O presidente laranja pode ter vencido diversos e inimagináveis desafios, mas é possível que tenha sido derrotado por um inimigo invisível que continua matando aos milhares na América e no mundo. As vozes de Alberfan, mesmo soterradas por 40.000m3 de lama há 55 anos, ainda assombram os luxuosos salões dos líderes de todo mundo.