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Na homilia de domingo, no Mosteiro de São Bento de Brasília, o bispo de Formosa (GO), dom Adair Guimarães, relembrou uma antiga fábula judaica sobre a Verdade e a Mentira, que se banhavam num poço. A mentira, aproveitando-se de uma distração da Verdade, saiu do poço, vestiu-se com as roupas da Verdade e saiu pelo mundo. Vestida de Verdade, a Mentira foi bem recebida por todos. Saída sem roupas do poço, a Verdade percebe que as pessoas fogem dela, pois ninguém quer saber da Verdade nua e crua. No mesmo domingo, encontrei na primeira página do Correio da Manhã de 9 de março de 1919 um discurso de Ruy Barbosa, em que um amigo advogado pinçou um trecho dedicado às verdades e mentiras.
Ruy Barbosa afirma que há mentira em toda a parte, nos programas, nos projetos, nas reformas, nas convicções, nas soluções. “Mentira nos homens, nos atos e nas cousas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações, nos blocos.” E segue, discursando que há mentira nas instituições, nas eleições, nas apurações, nas mensagens, nos relatórios, nos inquéritos... “mentira nos desmentidos. Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes (íntegros), ao cabo, muitas vezes não sabem se estão ou não mentindo”.
Não é que Ruy Barbosa esteja atual, seja um especial de profeta; é que, desse discurso de 1919 até hoje, nós continuamos convivendo com esse tipo de cultura, como cúmplices, já que só nós, eleitores, somos capazes de mudar essa situação, pelo voto e pela cobrança de nossos mandatários. Passaram-se 104 anos desde esse desabafo de nosso mais ilustre jurista – relemos o que o jornal da época publicou e descobrimos, assustados, que poderia estar no jornal de hoje. E que, mais de um século depois, poucos, como Ruy, se escandalizam com as mentiras. Parece que a maioria prefere fingir que as aceita. Depois, acabam convivendo com a mentira e são reféns dela.
A Mentira vestida de Verdade declama todos os dias narrativas com o mesmo cerne e as repete tanto que nossos cérebros acabam repetindo a mentira como verdade. Não exigimos que a travestida Mentira demonstre o que nos impõe; apenas aceitamos sem perceber que estão nos treinando para não discutir. A rebeldia da desconfiança é desestimulada pela ameaça de punição, de censura. A dúvida, a rebeldia, nos desnuda perante os outros, que se afastam como se afastaram da Verdade. E, quando começarmos a mentir para nós mesmos, é porque a Mentira venceu. E a Verdade talvez esteja afogada no fundo do poço.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos