Nos anos 70, 80 e 90, nós, jornalistas que cobríamos o Supremo Tribunal Federal, adivinhávamos a decisão sempre que um deputado, senador, ou partido, entrava com uma ação contestando alguma questão administrativa da Câmara ou do Senado: o destino do recurso era sempre o arquivo, sob o argumento de questão interna corporis - assunto doméstico de outro poder, em que o Supremo não iria se intrometer. Nos anos 2000, isso mudou, porque os juízes supremos parece que passaram a gostar do ativismo. Celso de Mello mandou abrir uma reunião ministerial a portas fechadas e proibiu o presidente de nomear um subordinado. Agora Barroso manda o Senado abrir uma CPI.
O Supremo tem agido como Executivo, Legislativo e até Constituinte. Mandou prender um deputado, a despeito da inviolabilidade constitucional “por quaisquer de suas opiniões, por palavras e votos.” Mandou prender um jornalista, a despeito de a Constituição estabelecer que “a expressão e a informação não sofrerão qualquer restrição”. Deu poderes a prefeitos e governadores para toque de recolher que viola o direito fundamental e pétreo de que “é livre a locomoção em tempo de paz”. E agora, por 9 a 2, dá aos prefeitos e governadores o poder supraconstitucional de decidir se os fiéis de uma religião terão acesso às suas igrejas, mesquitas, sinagogas e templos.
Uma celebração religiosa, é de Deus ou de César? César estabeleceu, na Constituição, o direito fundamental e pétreo de que é “assegurado o livre exercício dos cultos religiosos”. No entanto, o Supremo deu a prefeitos e governadores o poder de ultrapassar um direito constitucional. Supõe-se que, para outorgar um poder tão grande, superior à Constituição, o Supremo sinta-se imbuído de um poder ainda maior - em que o adjetivo “supremo" significa uma quase divindade. César acima de Deus.
A ironia é que logo após conferir poder supraconstitucional a prefeitos e governadores, o ministro Luís Roberto Barroso mandou abrir CPI contra o presidente, para investigar o que ele tem feito na pandemia. Ora, a responsabilidade, claramente, é de quem tem poder. E Supremo, que deu esses poderes aos prefeitos e governadores em abril do ano passado, agora os confirmou ainda mais fortes. Mas o presidente, que tem poderes abaixo da Constituição é que é o alvo de CPI. Os três poderes são independentes e harmônicos - estabelece a Constituição. Nessa ordem. A harmonia é consequência do respeito à independência.
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