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Conforme noticiou o jornal Gazeta do Povo, no dia 6 de maio, o Ministro Alexandre de Moraes, em liminar monocrática, atendendo a pedido de partido de oposição ao governo federal (Partido Solidariedade), suspendeu parcialmente decreto do Presidente da República que reduzia em 35% a alíquota do “imposto sobre produtos industrializados”. A ordem judicial atinge mercadorias produzidas na Zona Franca de Manaus.
A decisão do ministro parece-nos absolutamente equivocada. Além de não possuir fundamento jurídico e invadir (mais uma vez) atribuição da Presidência da República, é socialmente insensível e afasta uma bem-vinda desoneração da carga tributária sobre o consumo, a qual tem caráter regressivo e, assim, atinge principalmente famílias mais humildes.
Com efeito, o direito constitucional brasileiro, apesar de prever privilégios fiscais à Zona Franca de Manaus, não estabeleceu especificamente o quanto a tributação em geral deve superar aquela incidente sobre a região. E na ausência de um parâmetro constitucional preciso não cabe à jurisdição constitucional manipular, de forma autoritária e ilegítima, os conceitos abertos da Constituição a fim de impor a agenda de um grupo político, alegando aplicar o direito.
De fato, o tratamento constitucional da Zona Franca de Manuas é lacônico. O principal dispositivo sobre a temática é o caput do art. 40 dos chamados “Atos das Disposições Constitucionais Transitórias”, com a seguinte redação: “Art. 40. É mantida a Zona Franca de Manaus, com suas características de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, pelo prazo de vinte e cinco anos, a partir da promulgação da Constituição.” Esse prazo de 25 anos já foi prorrogado duas vezes, a última em 2014, por 50 anos.
Como se percebe com facilidade: o marco jurídico estabelece que a região será de livre comércio, de livre exportação e importação, e que gozará de “incentivos fiscais”. Contudo, não houve a fixação, a nível constitucional, sobre quais seriam os incentivos tampouco qual seria o seu montante.
Essa abertura e incompletude do tratamento em âmbito constitucional da matéria não é um erro do constituinte. Pelo contrário, trata-se de técnica redacional que visa a deixar maior espaço deliberativo para as instâncias democráticas (legislador e administrador), a fim de que promovam eventuais alterações sem precisar alterar o texto constitucional. É uma autêntica decisão do constituinte por não engessar a matéria.
Ou seja, quando a Constituição fixa uma política sem determinar seus contornos exatos ela está deixando margem de apreciação normativa para que as forças políticas alterem seus detalhes por meio da legislação ordinária. Trata-se de uma técnica de alocação de poder decisório. O uso de redação fechada aloca a carga decisória no próprio constituinte e, por consequência, na jurisdição constitucional. Pelo contrário, quando a Constituição se utiliza de redação mais aberta, isso aloca maior poder de conformação nas instâncias político-democráticas ordinárias: primeiramente, no legislador e, dentro do espaço que o Legislativo deixa para regulação infralegal, na cúpula do Poder Executivo.
O legislador e o administrador apenas não podem reduzir o benefício a tal ponto que os incentivos restassem completamente esvaziados.
A previsão constitucional não tem, contudo, a força nem a pretensão de fossilizar uma determinada alíquota para os tributos que incidem sobre o resto do país. Mantido algum nível de vantagem comparativa para a Zona Franca, sua magnitude pode variar significativamente no tempo por meio de legislação infraconstitucional e, dentro dos limites legais, pela regulação infralegal. Aliás, essa sempre a leitura do dispositivo, tanto assim que governos anteriores promoveram reduções do IPI, sem que o Supremo Tribunal Federal invalidasse a medida. Apenas com a relativamente recente deterioração da jurisdição constitucional e seu sequestro ideológico-partidário é que passou a ocorrer a modificação de entendimentos jurisprudenciais a fim de tolher poderes do atual Presidente. O quadro, diga-se de passagem, parece-me configurar um nítido caso de constitucionalismo abusivo por parte da jurisprudência.
Pois bem. No caso concreto, o Presidente da República assinou decretos reduzindo a alíquota de IPI, tributo que incide sobre produtos industriais, como automóveis e eletrodomésticos. A redução apresenta propósito humanista, uma vez que visa a impactar positivamente a inflação, a qual se encontra pressionada por diversas razões, entre elas as políticas de lockdown, que fracassaram no combate à pandemia (vide, neste sentido, os estudos da Universidade John Hopkins, do National Bureau of Economic Research, e do MIT), mas deixaram pesadas e desastrosas consequências sociais, especialmente para os grupos mais vulneráveis.
A redução da tributação também concretiza a linha da agenda vitoriosa nas urnas em 2018, de viés liberal-democrata. Isso porque ela visa a devolver o excesso de arrecadação. Ou seja, alcançado um equilíbrio das contas públicas e respeitadas as âncoras fiscais, o governo procurou devolver à população o montante de tributo arrecadado que superou as expectativas. Segundo previsões, a redução operada do IPI levaria a população brasileira a recolher cerca de 70 bilhões de reais a menos em 3 anos.
Frise-se que a diminuição dessa espécie tributária é a forma socialmente mais benéfica de devolver o excesso de arrecadação federal. Isso porque se trata de um tributo sobre o consumo, o qual tem impacto regressivo, isto é, ele pesa mais quanto menor a renda. Por que isso? Imagine que uma pessoa que ganhe R$ 2.000,00 num mês compre um fogão e que o custo do IPI sobre o fogão seja de R$ 200,00. Ela recolherá 10% da sua renda do mês para fazer frente àquele tributo. Agora imagine que alguém ganhe R$ 4.000 e compre exatamente o mesmo fogão. Ela pagará os mesmos R$ 200,00 de IPI. Como resultado final, no entanto, ela terá pago apenas 5% de sua renda mensal para a União. Por consequência, para uma pessoa muito rica o IPI sobre o fogão é irrelevante em sua renda, mas para alguém muito pobre é algo bastante considerável e até mesmo potencialmente proibitivo.
Um dos calcanhares de Aquiles do regime tributário brasileiro é exatamente a excessiva tributação sobre o consumo. Enquanto a média da OCDE gira em torno de 11% do PIB, a do Brasil fica em torno de 19%. Ou seja, quase 1/5 de toda nossa riqueza é consumida pelos tributos sobre o consumo.
Por isso, a forma socialmente mais conveniente de a União devolver o excesso arrecadatório é exatamente por meio da redução do IPI. Os demais tributos federais, como IOF (sobre operações financeiras), de importação e exportação, ou sobre renda não alcançam os grupos de brasileiros mais pobres.
Logo, o STF ao manipular a Constituição para dificultar e restringir essa possibilidade ao governo federal, além de proferir decisão juridicamente equivocada, manifesta enorme insensibilidade social.
Mais duas questões, de natureza mais técnico-jurídica, que merecem ser brevemente abordadas. Em primeiro lugar, parece-me que a matéria não deveria sequer ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) perante o STF. A razão é que a redução do IPI deu-se por decreto infralegal, e o Tribunal sempre teve a posição de que decretos que regulamentam dispositivos de lei não comportam impugnação em ADIn (vide nesse sentido, os seguintes julgados: Rcl 8273 AgR, Relator: Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno; e (ADI 2155 MC, Relator: Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno). Saliente-se ainda, também com base em jurisprudência do STF, que para que a ação fosse conhecida o autor teria de ter impugnado todo o chamado “complexo normativo”. Isto é, se a legislação do IPI permite que o Executivo faça alterações na alíquota sem compensar a Zona Franca e o autor reputa esse tratamento inconstitucional, ele teria de ter impugnado também a lei. Logo, se isso não foi feito, a ação deveria ter seu seguimento negado, semelhantemente ao que ocorreu na ADI 5.748, a qual também tratava da mudança de alíquotas tributárias mediante decreto.
Em segundo lugar, os requisitos para proferir liminar monocrática não se faziam presentes. As decisões monocráticas em sede de controle de constitucionalidade devem ser extremamente excepcionais, pois elas interferem na atuação de órgãos com legitimidade democrática, o que falece ao STF. Por isso, são cabíveis apenas quando houver jurisprudência consolidada sobre o tema – de modo que seja dispensável, por racionalização da pauta do colegiado, levá-lo novamente ao Pleno –, ou quando houver risco grave de perecimento do direito. Nada disso ocorreu na hipótese, pois inexistia jurisprudência que amparasse a decisão e, como visto, a alteração do IPI já ocorreu em outros momentos sem que isso tenha fulminado (ou sequer prejudicado) qualquer direito constitucional (muito pelo contrário).
A deterioração da Jurisdição Constitucional na América Latina
Uma boa parte da população leiga resta perplexa diante de decisões judiciais que invadem a atribuição de poderes eleitos e com argumentos jurídicos tão frágeis. Gostaria de lhes acalmar: não são só vocês que ficam perplexos. O exercício da jurisdição no Brasil está realmente em crise. Não só no Brasil, aliás. Na América Latina, a partir da primeira década e meia deste século, assistimos a uma forte deterioração do direito em vários países, como Venezuela, Bolívia e Nicarágua. Isso ocorreu também por aqui, ainda que (ao menos por ora) não na mesma magnitude.
Essa crise, a nosso ver causada pela recepção equivocada e ideologicamente oportunista de todo um conjunto de teorias, levou a que decisões socialmente impactantes passassem a ser tomadas por fóruns sem legitimidade democrática, com argumentos pífios à luz do direito, e que basicamente mascaram posições políticas com um verniz jurídico.
Não só. Como esses métodos heterodoxos de aplicação do direito permitem que qualquer decisão seja extraída de cláusulas vagas da Constituição, o Poder Judiciário passou a ser visto como um mecanismo para imposição de agendas políticas e, portanto, passível de ser usado estrategicamente por grupos políticos para blindar aliados e perseguir ou, ao menos, boicotar adversários. Isso gerou incentivos para que se buscasse aparelhar o Judiciário, particularmente seus órgãos de cúpula. O resultado foi um verdadeiro sequestro partidário e ideológico de várias Cortes que passaram a ser, em grande medida, um instrumento de determinados grupos políticos.
No tocante ao cenário brasileiro, esse parece ser o diagnóstico apresentado por alguns juristas. Nesse sentido, Ives Gandra da Silva Martins afirmou recentemente em entrevista: “O Supremo se transformou no maior partido de oposição”. O próprio ministro da Suprema Corte Marco Aurélio, quando ainda em exercício, reconheceu: “o STF está sendo utilizado pelos partidos de oposição para fustigar o governo. Isso não é sadio. Não sei qual será o limite”.
Seja ou não essa a explicação, é um fato que o direito está em crise no Brasil. Cabe, portanto, aos juristas e à população em geral fazer tudo o que está ao seu alcance para alterar essa situação, recuperar nossa Constituição, restaurar o Estado de Direito e revigorar os direitos fundamentais, solapados pelo ativismo judicial.