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André Uliano

André Uliano

Análise jurídica da decisão de Celso de Mello revela erros e duplo padrão

O ministro do STF Celso de Mello
Celso de Mello, ministro do STF (Foto: Rosinei Coutinho/STF)

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Já apontamos em artigo anterior que a composição atual do STF tem se comportado de modo político e parcial contra o atual governo e como, a nosso ver, essa postura e suas causas já foram mapeadas pela ciência política.

Uma nova decisão parece ser mais um exemplo dessa postura e, por isso, vale ser examinada.

Conforme noticiou a Gazeta do Povo, nesta sexta-feira (11.09.2020), "o ministro Celso de Mello, relator no Supremo Tribunal Federal (STF) do inquérito que investiga a suposta interferência política de Jair Bolsonaro na Polícia Federal (PF), negou pedido para que o presidente preste depoimento por escrito."

A situação é, no mínimo, incomum. Inicialmente , o ministro proferiu a decisão em meio a uma licença-médica, invocando dispositivo excêntrico da Lei Orgânica da Magistratura (uma lei com elementos anacrônicos, visto que promulgada em 1979), o art. 71, § 2º.

Ademais, a decisão, proferida pelo magistrado que já comparou Bolsonaro a Hitler (escancarando a parcialidade contra o Presidente), possui claros indícios de duplo padrão contra o Chefe do Executivo.

E essa não foi a primeira medida estranha dentro do inquérito. De fato, num Tribunal em que é corrente crimes graves prescreverem e em que casos ruidosos se arrastaram por anos, Celso de Mello determinou que Sérgio Moro fosse ouvido logo no início das investigações em prazo relâmpago de 5 (cinco) dias, algo pouco usual para processos com investigados soltos até mesmo na primeira instância, a qual costuma ser bem mais célere. Mais: a determinação de turbinar a oitiva foi tomada em virtude de uma petição apresentada por parlamentares de oposição, os quais não sendo vítimas ou réus não possuíam sequer legitimidade para requerer qualquer medida nos respectivos autos.

A mais recente decisão que examinaremos neste texto se soma, assim, a esse histórico nebuloso. Aqui apontaremos três pontos do julgado que indicam ser esse mais um episódio de tratamento seletivo contra o atual mandatário na chefia do Executivo nacional.

Saliente-se que não estamos, de modo algum, tecendo qualquer crítica à investigação em si. Numa República todas as autoridades tem de estar submetidas à lei e sujeitas a responsabilização (aliás, inclusive o os ministros do STF). Contudo, num Estado de Direito, a responsabilização tem de seguir regras prévias, claras e imparciais. É quanto a isso que tecemos as considerações a seguir.

1) Decisão ignora regra do Código de Processo Penal que foi aplicada em favor de Michel Temer em duas oportunidades por diferentes ministros

O objeto principal da decisão do ministro do STF foi a possibilidade ou não de Bolsonaro depor por escrito, ao invés de presencialmente.

Essa possibilidade está prevista no capítulo referente às testemunhas do Código de Processo Penal, especificamente no art. 221, § 1º:

“§ 1o. O Presidente e o Vice-Presidente da República, os presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal poderão optar pela prestação de depoimento por escrito, caso em que as perguntas, formuladas pelas partes e deferidas pelo juiz, Ihes serão transmitidas por ofício.”

Embora o dispositivo se refira aos casos em que o Presidente é ouvido como testemunha e não como investigado, ele foi utilizado para permitir que o ex-Presidente Michel Temer depusesse por escrito durante seu mandato. Isso ocorreu em duas oportunidades, uma delas por decisão do Ministro Fachin, outra do Ministro Barroso.

Em ambos os casos, os ministros afirmaram ser a aplicação da regra medida adequada diante da concordância do Ministério Público. No caso atual, o Procurador-Geral da República também se manifestou pela faculdade do Presidente em optar pela forma de sua oitiva, salientando, a nosso ver de modo bastante acertado:

Se o ordenamento jurídico pátrio atribui aos Chefes dos Poderes da República a prerrogativa de apresentar por escrito as respostas às perguntas das partes quando forem testemunhas, situação em que há, ordinariamente, a obrigatoriedade de comparecer em juízo e de falar a verdade, com mais razão essa prerrogativa há de ser observada quando forem ouvidos na qualidade de investigados, hipótese em que aplicável o direito ao silêncio, de que decorre sequer ser exigível o comparecimento ao ato”.

O Ministro Celso de Mello, no entanto, ignorando a postura que vinha prevalecendo na Corte determinou que Bolsonaro depusesse presencialmente.

A decisão viola manifestamente a igualdade perante as leis e os tribunais.

De fato, ante a clara divergência ante a prática recente do Tribunal, cremos o relator deveria ter-se valido do art. 22, parágrafo único, “b”, do Regimento Interno da Casa, e enviado a questão para o Plenário. Com efeito, determina o dispositivo citado:

“Parágrafo único. Poderá o Relator proceder na forma deste artigo: (…) b) quando, em razão da relevância da questão jurídica ou da necessidade de prevenir divergência entre as Turmas, convier pronunciamento do Plenário.”

2) Ministro invocou monocraticamente questões sobre constitucionalidade da norma que não haviam sido objeto de debate, o que fragiliza o Princípio constitucional do Contraditório e a Cláusula de Reserva de Plenário

Como razões para sua decisão, entre outras questões, o ministro do STF argumentou que o dispositivo do Código de Processo Penal acima mencionado (art. 221, § 1) que permite a oitiva do Presidente por escrito seria inconstitucional.

Esse seria um caso do que em direito chamamos de declaração incidental de inconstitucionalidade. Nela o julgador não está examinando diretamente a (in)constitucionalidade da norma. Ele está julgando uma outra questão (se o Presidente pode ou não depor por escrito) e para decidir, como fundamento de seu raciocínio, ele analisa a constitucionalidade de uma regra que pode modificar sua conclusão.

Contudo, esse tipo de decisão incidental não pode ser realizada monocraticamente pelo relator.

Com efeito, conforme dicção clara e expressa da Constituição, a inconstitucionalidade de uma norma só pode ser declarada por maioria absoluta do Plenário ou órgão especial dos tribunais. Nesse sentido, confira o art. 97 da Constituição:

“Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.”

Como o STF não possui órgão especial, apenas o Plenário poderia julgar a regra inconstitucional.

Por isso, vislumbrando inconstitucionalidade, deveria o relator ter remetido a questão para Plenário, conforme preceitua o art. 22, caput, do Regimento Interno do STF.

Confira:

Regimento Interno, art. 22. “O Relator submeterá o feito ao julgamento do Plenário, quando houver relevante arguição de inconstitucionalidade ainda não decidida.”

São inúmeros os Precedentes do STF nesse sentido. Apenas a título de ilustração, veja o seguinte julgado:

“Não há necessidade de pedido das partes para que haja o deslocamento do incidente de inconstitucionalidade para o pleno do tribunal. Isso porque é dever de ofício do órgão fracionário esse envio, uma vez que não pode declarar expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, nem afastar sua incidência, no todo ou em parte.” [Rcl 12.275 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 22-5-2014, P, DJE de 18-6-2014.]

Mas não é só isso. Os argumentos expostos pelo ministro no sentido da inconstitucionalidade da norma não haviam sido vislumbrados anteriormente pelas partes. Logo, não haviam sido debatidos.

Nesses casos, a fim de não se surpreender os envolvidos no processo e respeitar o contraditório, o magistrado tem de intimar as partes para que se manifestem sobre questão relevante que verificou apenas quando do julgamento e não foi objeto de atenção pelas partes.

É expresso nesse sentido o art. 10 do Código de Processo Civil:

“Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”

Do contrário, desrespeitado esse preceito, a decisão fica viciada por ofensa ao contraditório, expressamente previsto no art. 5º, LV, da Constituição. É o que se chama de decisão de terza via (terceira via), em que uma parte diz A e a outra diz B, mas o juiz decide uma terceira coisa, “C”, sem permitir que antes as partes se manifestem sobre ela.

Assim, cremos que a decisão do Ministro Celso de Mello tenha incorrido em gravíssimo equívoco. Primeiramente, se ele acreditava que a norma é inconstitucional, deveria ter representado à PGR para propositura de ADIn quando a regra foi aplicada ao ex-Presidente Michel Temer. Ademais, caso desejasse invocar a inconstitucionalidade nesse caso (mesmo que o argumento tenha se somado a outros fundamentos autônomos), acreditamos que o mais adequado seria remeter a questão ao Plenário e permitido manifestação das partes e do Ministério Público.

3) Ministro concedeu a Sérgio Moro prerrogativa não usual na prática forense e que não foi aberta ao Presidente quando o ex-ministro foi ouvido

O inquérito em que o Ministro Celso de Mello proferiu sua decisão, consoante requisição da PGR, tem finalidade dupla: investigar supostos delitos que Sergio Moro atribuiu ao Presidente e, por outro lado, investigar se o ex-Ministro da Justiça mentiu e denunciou caluniosamente o Presidente.

Assim, tanto o ex-Ministro quando o Presidente são investigados no feito.

Ocorre que receberam tratamento distinto, apesar de ocuparem posição comum.

De fato, o ministro Celso de Mello permitiu que, durante a oitiva de Bolsonaro, o ex-ministro Sergio Moro, por meio de sua defesa, faça perguntas ao Presidente da República.

O argumento foi o de que ele é coinvestigado e, portanto, para satisfazer a ampla defesa, deve ter o direito a reperguntas. Contudo, essa mesma prerrogativa não foi concedida ao Presidente no despacho que determinou a oitiva de Sérgio Moro. Ademais, ela não é comum na prática forense.

Em geral, a possibilidade de perguntas só é aberta durante o interrogatório processual, não durante as investigações.

Aplicação seletiva da legislação Viola o Estado de Direito

Gostaríamos de encerrar salientando que o uso de duplo padrão e o seletivismo no exercício da jurisdição não são vícios de menor relevância. Pelo contrário, configuram violação ao princípio da igualdade perante as leis e os tribunais, que forma parte indelével do postulado do Estado de Direito, verdadeiro pilar civilizatório dos sistemas jurídicos comprometidos com as liberdades fundamentais.

De fato, como leciona de modo brilhante o falecido teórico de Harvard Lon Fuller, em seu clássico The Morality of Law, o Estado de Direito, com a consequente igualdade perante a ordem jurídica, configura um traço ético dos ordenamentos que protegem o respeito recíproco entre as pessoas e os grupos sociais, bem como entre governantes e governados (ou, no caso, entre juízes e jurisdicionados). O fundamento para tanto não é nada menos do que a igual dignidade de todo ser humano e a Regra de Ouro que determina que se trate aos demais como a si mesmo.

Ademais, o Estado de Direito e a aplicação isonômica da legislação formam uma proteção contra o avanço de estatutos desumanos e autoritários. Isso porque os grupos que pudessem pretender a introdução de regras com esse perfil, sabem que por se aplicarem a todos indistintamente essas normas podem se voltar contra eles. Quando, por outro lado, decisões são direcionadas apenas contra pessoas ou grupos políticos a que os membros dos tribunais são antipáticos, isso alimenta os grupos autoritários que lhes são opostos, sabedores de que seus excessos têm alvo certo.

Ainda, a violação da igualdade gera perda de credibilidade e desgaste à autoridade da ordem jurídica e institucional. De fato, as pessoas e os grupos perseguidos por decisões seletivas não têm razões para cooperar com uma ordem que os persegue de modo autoritário e parcial.

Frise-se, ainda, que é assustador que o Estado Policial possa ser desencadeado e ministrado de modo assimétrico contra diferentes grupos políticos, fenômeno típico de regimes abjetos e de momentos sombrios da história.

Por isso, externamos nossa preocupação com decisões e atos de órgãos de Estado que apresentam fortes indícios de seletivismo e duplo padrão. A defesa do Estado de Direito é imprescindível para uma ordem politico-social humanitária, civilizada e que goze da adesão e respeito de todas as pessoas razoáveis e responsáveis.

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