Conforme noticiou a Gazeta do Povo,
“(...) Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu nesta terça-feira (5) que o aborto seria ‘uma questão de saúde pública’ a que ‘todo mundo teria direito’ (veja o vídeo aqui). A opinião do político não é novidade, mas até agora não estava sendo mencionada pela tentativa do PT de se aproximar de eleitores cristãos, principalmente evangélicos.”
Segundo a reportagem, a fala foi fortemente repudiada por lideranças humanistas, como a ex-Ministra dos Direitos Humanos Damares Alves, e entidades jurídicas respeitadas em todo país como a ANAJURE e o IBDR.
A liberação do aborto, realmente, constitui uma péssima política pública, visto que se trata de prática moralmente vil, juridicamente infundada e humanamente perniciosa. É até verdade que ele constitui uma questão de saúde pública. Contudo, não se trata de uma questão tão só e exclusivamente de saúde pública, mas também de justiça penal. As razões para essa conclusão são, em apertada síntese, as seguintes:
a) trata-se de conduta moralmente gravíssima e injusta, a qual deteriora o bem comum e, portanto, deve ser desestimulada pela legislação por meio de sanções proporcionais à sua elevada gravidade;
b) juridicamente, a tutela penal da vida intrauterina é uma opção eficiente e adequada;
c) a prática do aborto é humanamente trágica, também por força de suas consequências nefastas para aqueles que a praticam.
Pretendo expor cada um desses pontos em maior detalhe. Neste texto, no entanto, abordaremos especificamente apenas o primeiro deles (vileza moral do aborto e seu prejuízo ao bem comum). No texto da próxima semana examinaremos as demais questões.
Pois bem, para perceber o caráter injusto e ignóbil do aborto creio que a percepção de dois fatos é relevante:
- a) que a vítima é o um ser humano vivo e dotado de dignidade; e,
- b) que o aborto representa o homicídio de uma pessoa inocente e indefesa, que quando autorizada pelos pais é consentida por quem possui dever especial de proteção, mediante práticas que envolvem extrema crueldade.
Inicialmente, quanto à existência de vida humana, para demonstrá-la precisamos esclarecer duas coisas: o que é vida; e, o que significa ser um membro da espécie humana.
Ora, vida é, primordialmente, capacidade de automovimento. Seres vivos movimentam-se; seres brutos são movimentados por terceiros. “Viver é, antes de tudo, mover-se a si próprio, automover-se. Essa é uma velha definição do ser vivo (Aristóteles, De Anima). O vivo é aquele que tem dentro de si mesmo o princípio de seu movimento” (Yepes e Echevarria, Fundamentos de Antropologia, 2005, p. 24).
E quando essa vida pode ser adjetivada como humana? Como resposta prática para o problema particular deste texto, podemos começar pela sintética resposta de que a vida é humana sempre que seu titular for um membro da espécie homo sapiens.
Mas aí podemos perguntar: por que outorgamos aos membros dessa espécie os atributos de humanidade da qual decorre uma particular dignidade (dignidade da pessoa humana) e consequentemente a exigência de tratamento condigno e respeitoso? A causa da dignidade humana é a posse de certos atributos que nos caracterizam como pessoas e não coisas, particularmente pela posse de determinadas potências: razão e vontade livre.
Conforme explica o professor de Princeton Robert P. George e o especialista em bioética Patrick Lee, em seu artigo conjunto The Nature and Basis of Human Dignity:
- "a dignidade da pessoa é aquela pela qual as pessoas excedem, superam, outros seres, especialmente outros animais, e merecem respeito e consideração de outras pessoas. Defendemos que o que distingue seres humanos de outros animais, o que faz dos seres humanos pessoas e não coisas, é a sua natureza racional. Seres humanos são criaturas racionais em virtude da posse de capacidades naturais para o pensamento conceitual, deliberação, e livre arbítrio, isto é, capacidades naturais para decidir sobre suas próprias vidas."
Aqui cabe um esclarecimento importante: a dignidade não se baseia no efetivo exercício ou no nível de excelência dessas capacidades. No tocante à dignidade humana, é irrelevante o fato de uma pessoa estar em pleno gozo dessas aptidões ou estar impedida por quaisquer fatores; ou de ser mais ou menos inteligente ou virtuosa. Basta a simples posse por parte do ser humano de uma natureza intrinsecamente provida dessas potencialidades. Assim, mesmo uma pessoa que não as exerça por qualquer motivo, seja, por exemplo, uma doença grave, a perda da consciência ou ausência de desenvolvimento físico suficiente, ela não perde sua dignidade humana.
Esse fenômeno está muito bem explicado pelo filósofo suíço Gilles Emery, em seu texto The Dignity of Being a Substance: Person, Subsistence, and Nature. Concordam Patrick Lee e Robert P. George no texto antes citado. Confiram:
- “Essas capacidades naturais básicas para raciocinar e fazer escolhas livres são possuídas por todo ser humano, mesmo aqueles que não podem exercê-las imediatamente. Ser uma pessoa, portanto, deriva do tipo de entidade substancial que se é, uma entidade substancial com uma natureza racional - e esse é o fundamento da dignidade no sentido mais importante. Como a personalidade se baseia no tipo de ser - uma entidade substancial cuja natureza é racional - não se pode perder a dignidade pessoal fundamental de uma pessoa enquanto se existir como ser humano.”
Dito isso, podemos voltar à relação entre vida humana e pertença à espécie homo sapiens para deixar um ponto mais claro: o fundamento da dignidade humana não se confunde com o fato de se ser um indivíduo da espécie homo sapiens. É a posse de uma natureza dotada de inteligência e liberdade o que concede eminente valor ao ser humano. Assim, caso fossem descobertas outras espécies com potências intelectivas igualmente excelsas (por exemplo, outros animais ou, para uma hipótese mais pitoresca, extraterrestres), também seriam pessoas contempladas com idêntica dignidade.
De todo modo, para fins práticos da discussão abordada neste artigo, há vida humana sempre que seu titular for um ser da espécie homo sapiens, uma vez que todos eles possuem uma natureza intrinsecamente dotada de elevadas potencialidades, como a inteligência e consequentemente a vontade livre, do que deriva o potencial para participar na riqueza dos bens humanos.
Portanto, uma vida humana sempre se iniciará quando surge um novo homo sapiens com uma carga genética inédita, completa, única e irrepetível. Aí surgirá a riqueza de um novo ser dotado de dignidade própria.
Qual evento marca esse surgimento? Nos dias atuais, a embriologia afirma com suficiente segurança que a existência de um ser geneticamente pertencente à espécie homo sapiens, isto é, humano; diverso dos demais, inclusive da mãe; único, irrepetível e vivo, dá-se a partir do momento da concepção.
Neste sentido, dentre muitos autores que poderiam ser citados, Moore e Persaud, embriologistas de renome, ensinam:
- "O desenvolvimento humano é um processo contínuo que se inicia quando um ovócito (óvulo) de uma fêmea é fertilizado por um espermatozoide de um macho. A divisão celular, a migração celular, a morte celular programada, a diferenciação, o crescimento e o rearranjo celular transformam o ovócito fertilizado – o zigoto –, uma célula altamente especializada e totipotente, em um organismo multicelular. Embora a maior parte das mudanças no desenvolvimento se realize durante os períodos embrionários e fetais, ocorrem mudanças importantes nos períodos posteriores do desenvolvimento: infância, adolescência e início da vida adulta" (Embriologia Básica, 2004, p. 2).
A partir da concepção, portanto, o novo ser humano surge e começa a passar pelas várias fases de seu desenvolvimento.
Porém, surge uma questão relevante: proteger toda vida humana desde a concepção – quando o novo ser vivo é constituído ainda por uma única célula – não implicaria no entendimento (indubitavelmente equivocado e até absurdo) de que toda célula humana deva ser protegida?
De fato, do conceito de vida como capacidade de automovimento, resta perceptível que há vida não só num corpo inteiro e autônomo, mas em cada uma de suas células. Isso na medida em que possuem uma dinâmica própria, autorregrada, potencial de divisão de suas partículas etc.
Todavia, percebe-se que seria absurdo dizer que cada célula de um corpo goza de proteção jurídica a sua vida. O direito não veda a extração de qualquer tecido humano – que implica na morte de inúmeras células –, ainda que possuam vida.
Por que não? Qual a diferença entre uma célula qualquer e o embrião no momento imediato à concepção? A distinção está exatamente em seu caráter inédito, único e irrepetível, a partir do momento em que possui uma carga genética completa e distinta da dos genitores. É isso que o torna um ser humano novo, titular de sua própria vida, ainda que no princípio altamente dependente de terceiros.
Como bem lecionam os embriologistas já citados: o zigoto, produto da concepção, é uma “célula totipotente e altamente especializada, marca o início de cada um de nós como indivíduo único” (MOORE; PERSAUD, 2004, p. 18).
Dernival Brandão, ginecologista e obstetra, membro da Academia Fluminense de Medicina, detalha que
- "no ato sexual, a união dos gametas humanos com a fertilização do óvulo pelo espermatozoide, gera um novo ser da espécie, um embrião humano, nesta fase inicial denominado zigoto. A vida humana biologicamente é originada quando, na união dos gametas humanos, se estabelece um novo genoma especificamente humano, único e irrepetível. É o embrião humano, e não mais espermatozoide ou óvulo. Desde então é um ser humano completono sentido de que nada mais de essencial à sua constituição lhe será acrescentado após a concepção. Todo ele já está previsto e contido no seu genoma. Há um novo sistema de informações genéticas/moleculares independentes, operando em unidade, com uma individualidade biológica e identidade humana (livro Direito Fundamental à Vida, p. 570-571).
Portanto, a proteção jurídica do embrião se justifica por se tratar de um ser humano novo, distinto e completo, ao contrário do que ocorre com tecidos isolados do corpo humano. Ao perecer uma simples célula do corpo já formado, não há extinção do indivíduo, da pessoa. Permanece viva, com todas as demais células que reproduzem aquele mesmo padrão genético.
Com o embrião ocorre de modo distinto: sua aniquilação leva à perda do próprio ser humano, distinto, único e irrepetível.
Daí por que a particular preocupação com a tutela da vida do ser humano desde a concepção.
Para uma análise filosoficamente profunda, completa e com dados científicos sólidos acerca da presença da vida e dignidade humana desde a concepção, indico a obra de Robert P. George, já citado acima, e do professor de Filosofia da Universidade da Carolina do Sul Christopher Tollefsen: Embryo – A Defense of Human Life.
Voltando ao tema, havendo um ser dotado de dignidade, impõe-se em relação a ele conduta correspondente de respeito e consideração. Há o dever de respeitar e fomentar os bens básicos de uma vida propriamente humana. Entre esses bens básicos, indubitavelmente, encontra-se a manutenção da vida física, do que decorre a obrigação de não ceifar, deliberadamente, a vida inocente. Atuar de modo contrário, implica em flagrante injustiça.
Abortar, portanto, não é uma mera conduta imoral, precipuamente privada, com impactos apenas em termos de moralidade pessoal para aquele que a pratica. Ele também é isso. Mas além da imoralidade pessoal, ele configura ato de injustiça, impedindo que sua vítima - o ser humano em gestação, cuja vida e personalidade é distinta da dos pais e, portanto, não disponível por eles - usufrua de seu direito básico à continuidade de seu normal processo vital.
Frise-se que os direitos básicos de cada ser humano são elementos intrinsecamente constitutivos do bem comum, de modo que cabe à comunidade política zelar por eles por meio dos instrumentos jurídicos adequados. Diante das formas mais graves de violações desses direitos, torna-se conveniente inclusive a tutela propriamente penal.
No caso do aborto, ele é configurado por conduta de deliberadamente tolher a vida humana nas fases iniciais de seu desenvolvimento. O ser humano em gestação é absolutamente inocente e se encontra em situação totalmente indefesa. Quando praticado com o consentimento dos pais, ele envolve o homicídio do infante por aqueles que possuem o mais direto e intenso dever de cuidado. Ademais, as técnicas utilizadas nas manobras abortivas são cruéis, como bem descrito em artigo publicado pela Gazeta do Povo e explicado em documentário do ex-médico abortista Bernard Nathason.
Logo, torna-se não só legítima como imperiosa a utilização dos mecanismos legais de proteção, incluindo o direito penal.
Dito isso, creio ter demonstrado satisfatoriamente que o aborto configura conduta gravemente imoral e propriamente injusta, sendo correto e devido um regramento jurídico que busque evitá-lo e puni-lo por meio de sanções suficientes, levando em conta sua gravidade. Na semana que vem, nosso texto descreverá por que essa é uma opção juridicamente eficiente e adequada. Também abordaremos os dados - hoje já bastante sólidos - sobre as chagas deixadas pelo aborto em quem o pratica.
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